Há mais de 45 anos que a Fundação Portuguesa de Cardiologia desenvolve regularmente iniciativas em Portugal para modificação de hábitos de vida e promoção de comportamentos saudáveis na população e na promoção de saúde e prevenção das cérebro-cardiovasculares (DCCV). Uma experiência notável, que certamente será aproveitada pela coligação “Nação Invisível”, uma iniciativa que resulta de uma colaboração entre a Fundação Portuguesa de Cardiologia (FPC), a Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC), a Portugal AVC – União de Sobreviventes, Familiares e Amigos (PT.AVC) e a Novartis. Em Entrevista ao nosso jornal, Carlos Morais Vice-Presidente da FPC mostra-se convicto de que a “Nação Invisível” irá potenciar a intervenção de todos os atores que queiram contribuir para que as DCCV deixem de ser um flagelo para tantas famílias.
Healthnews (HN) – Apesar dos avanços significativos na inovação, diagnóstico e intervenções em cardiologia, a mortalidade por doenças cardiovasculares não tem diminuído. Na sua opinião, quais são os principais obstáculos que impedem uma maior eficácia desses avanços em termos de redução da mortalidade?
Carlos Morais (CM) – As doenças não transmissíveis, entre as quais se destacam as doenças cérebro-cardiovasculares, são causas importantes de incapacidade, doença, reforma antecipada por incapacidade e morte prematura na União Europeia (UE), com custos sociais e económicos consideráveis.
As doenças não transmissíveis são responsáveis por 80 % do peso da doença nos países da UE e constituem as principais causas de mortes prematuras evitáveis. Os custos humanos e financeiros são elevados e deverão aumentar, tendo em conta o envelhecimento da população da UE. Além disso, as pessoas que padecem de doenças não transmissíveis são mais vulneráveis a outras doenças, como se verificou durante a pandemia de COVID-19.
A redução dos encargos das doenças não transmissíveis exige uma abordagem holística. Simultaneamente é necessário combater as desigualdades no domínio da saúde em todos os planos.
As DCCV em Portugal continuam a ser a principal causa de morte e a primeira causa de incapacidade no nosso país, responsáveis por 1 em cada 3 mortes.
Da maior relevância é que grande parte destas mortes e incapacidades afetam pessoas jovens, com menos de 65 anos, e mais importante de tudo, são em grande parte evitáveis.
As estratégias de prevenção primária focam-se sobretudo na adoção de hábitos e comportamentos de vida saudáveis (sociais, alimentares, promoção de exercício físico) ocasionalmente suplementadas e identificadas como de maior risco, com terapêutica farmacológica.
Das estratégias utilizadas na prevenção primária das DCCV, destaca-se a promoção de hábitos de vida saudáveis, como a prática regular de atividade física, alimentação mediterrânica, não fumar e evitar o consumo excessivo de álcool. Além disso, a detecção precoce e o controle de fatores de risco cardiovascular modificáveis como a hipertensão arterial, a diabetes, o colesterol elevado e o tabagismo, são fundamentais para a prevenção das DCCV.
A prevenção secundária é direcionada a pessoas que já apresentam alguma doença cardiovascular estabelecida, com o objetivo de evitar complicações, minimizar os danos e prevenir novos eventos.
Ambas as estratégias são essenciais para reduzir a mortalidade e morbilidade associadas às DCCV.
As estratégias de prevenção secundária incluem tratamento de fatores de risco modificáveis, como hipertensão arterial, diabetes, dislipidemia, tabagismo e obesidade. Também pode ser recomendado o uso de medicamentos, como antiagregantes plaquetários, estatinas e betabloqueadores, para reduzir o risco de eventos cardiovasculares.
Pretendemos também identificar precocemente os doentes antes da ocorrência de eventos cérebro-cardiovasculares, no âmbito de rastreios e ações de sensibilização.
Em Portugal a implementação de medidas eficazes de intervenção diagnóstica e terapêutica precoce como as vias verdes coronária e do Acidente Vascular Cerebral permitiram que se registasse significativa diminuição de mortalidade e morbilidade nas DCCV, embora essa diminuição se venha atenuando nos últimos anos.
Infelizmente outras medidas de extrema eficácia como o desenvolvimento de programas de reabilitação cardíaca e programas de correção de fatores de risco no âmbito dos cuidados de saúde primários não tiveram sucesso semelhante, em parte por não terem tido o mesmo nível de implementação nacional.
Em Portugal temos assim ainda um longo caminho a percorrer já que muitas vezes as políticas de saúde se focam na gestão da doença e não na prevenção e promoção da saúde. Em Portugal o investimento em prevenção é de apenas 1,9 % do total das despesas de saúde, em comparação com 3,2% na UE.
O risco cardiovascular global é muito importante e significa que se deve ter atenção a todos os fatores de risco ao mesmo tempo, e não só a cada um isoladamente.
O combate aos fatores de risco deve fazer-se em conjunto, de forma a tentar controlar todos em simultâneo. Os fatores de risco potenciam-se uns aos outros, ou seja, ter excesso de peso ou obesidade irá aumentar a probabilidade de ter diabetes e colesterol elevado.
Um estudo desenvolvido no Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge demonstrou que, numa população entre os 18 e os 79 anos, cerca de 55% das pessoas têm 2 ou mais fatores de risco cardiovasculares. Mais de metade tem excesso de peso ou obesidade; cerca de 40% têm hipertensão arterial; 1/4 são fumadores e cerca de 30% têm colesterol muito elevado.
Estes números preocupantes mostram que em Portugal, ainda há muito por fazer para baixar o risco de DCCV, em que somos um dos países com maior mortalidade na Europa.
HN – Como é que a prevenção secundária é priorizada na gestão de pacientes que já sofreram um evento cardiovascular, especialmente em relação aos fatores de risco como dislipidemias e genética?
CM – A intervenção nos doentes que já sofreram um evento cérebro-cardiovascular deve ser centrada no processo de reabilitação e de correção agressiva de fatores de risco identificados, seguindo linhas de orientação cientificamente validadas e testadas.
É um processo verdadeiramente multidisciplinar, com intervenção de diversos grupos profissionais – médicos, enfermeiros, terapeutas, nutricionistas e psicólogos, em âmbitos diversos.
Todos os profissionais contribuem com as suas competências específicas para fornecer ao doente um plano de tratamento abrangente e individualizado.
Será desejável orientar uma política cada vez mais descentralizada, fora do âmbito das especialidades hospitalares, no ambiente de cuidados de saúde primários, numa lógica de intervir onde o doente se encontra.
Nos últimos anos, houve avanços significativos na prevenção primária e secundária de doenças cardiovasculares. As recomendações mais recentes de prevenção cardiovascular recomendam que os médicos considerem não apenas o risco cardiovascular geral, mas também o risco a longo prazo de eventos específicos, como o Enfarte Agudo do Miocárdio, a disfunção do músculo cardíaco e o acidente vascular cerebral.
Com o avanço da ciência e da medicina, a prevenção cardiovascular está a tornar-se cada vez mais individualizada e baseada em evidências, permitindo um tratamento mais eficaz e personalizado para cada paciente.
Desenvolvem-se assim terapias farmacológicas e com dispositivos cardíacos para prevenção secundária de eventos cardiovasculares, sobretudo nos campos da aterosclerose, da diabetes, da insuficiência cardíaca e das arritmias cardíacas.
Quando se fala de prevenção secundária é importante lembrar que as intervenções terapêuticas procuram atuar nos vários níveis da evolução da doença cardiovascular em diversos níveis e que incluem a progressão da doença arteriosclerótica, a falência do músculo cardíaco, os acidentes vasculares cerebrais relacionados com a presença de fibrilhação auricular ou a morte súbita por arritmia cardíaca.
Novas terapêuticas farmacológicas envolvem a redução agressiva do colesterol com os inibidores da PCSK-9 ou os inibidores da atividade do fator X que atuam como antitrombóticos. Medicamentos com propriedades anti-inflamatórias específicas como os inibidores da interleucina 1 beta proporcionaram importantes avanços na redução de eventos cardiovasculares.
Em indivíduos portadores de diabetes tipo 2 temos acesso agora a fármacos que além do controle glicêmico exercem mecanismos de proteção cardiovascular, Destacam-se aqui os inibidores da SGLT-2 e análogos do GLP-1 na redução de eventos em diabéticos com alto risco cardiovascular.
O maior conhecimento dos efeitos dos peptídeos natriuréticos como fator protetor na insuficiência cardíaca possibilitou o desenvolvimento de fármacos inibidores da sua degradação, trazendo boas perspetivas na prevenção da progressão dessa grave enfermidade.
Dispositivos cardíacos implantáveis como os registadores de eventos ou os cardioversores desfibrilhadores são hoje incontornáveis na gestão do doente com suspeita ou risco de arritmias cardíacas.
Encontram-se também em desenvolvimento novas terapêuticas no campo da intervenção genética, com terapias de RNA ou com anticorpos monoclonais
HN – Considerando a falta de métricas claras para a implementação e monitorização das diretrizes de risco cardiovascular, quais estratégias que sugere para melhorar esta situação?
CM – Existem já orientações nacionais e internacionais precisas e validadas sobre gestão de fatores de risco em diversos subgrupos específicos de doentes. Estão identificados grupos de doentes de maior risco e estabelecidas orientações específicas em termos de intervenção terapêutica para prevenção de eventos cardiovasculares.
É fundamental que essa evidência seja mais divulgada junto dos profissionais de saúde e conhecida e assimilada pela população em geral.
Será desejável que no presente modelo em fase de implementação, de Unidades Locais de Saúde (ULS), sejam criadas métricas, precisas, claras e objetiváveis respeitando as recomendações nacionais e internacionais. Reproduzindo outros modelos já de sucesso comprovado, devem existir incentivos que recompensem intervenções na população com resultados mensuráveis e monitorizáveis como seja numa comunidade determinar a percentagem de doentes com colesterol abaixo de valor desejável ou a percentagem de doentes que deixaram de fumar numa comunidade após um evento cérebro-cardiovascular.
As ULS deverão dispor dos meios de suporte adequado que lhes permitam obter e monitorizar ao longo do tempo esses dados. Esses dados deverão merecer análise e avaliação de âmbito nacional de forma a poder reproduzir as intervenções mais eficientes respeitando especificidades demográficas.
Deverá ser recolhida e partilhada informação clara, precisa e atualizada sobre ganhos em saúde nas populações avaliadas.
Não esquecer que a prevenção em qualquer área de intervenção, é uma aposta de longo curso cujos resultados por vezes só tem impacto significativo nas gerações futuras.
HN – O sistema de saúde parece estar muito focado na resposta imediata a eventos agudos como AVC e enfarte. Como podemos melhorar o acompanhamento dos pacientes após esses eventos para garantir uma prevenção secundária eficaz
CM – O foco na intervenção precoce baseada em linhas de ação como a via verde coronária e a via verde do AVC tem demonstrado resultados mensuráveis e positivos na redução drástica da mortalidade e morbilidade ligada a estes eventos. Muitos desses ganhos tem ligação direta a redução de mortalidade cérebro- cardiovascular evidenciada na evolução das curvas de mortalidade nos últimos anos.
No entanto, continuamos a falhar no estabelecimento de percursos clínicos que mantenham o doente em seguimento regular e integrado numa rede de cuidados diferenciados, seja em ambiente hospitalar ou em cuidados de saúde primários.
É para isso essencial determinar linhas de ação que valorizem o trabalho dos profissionais de saúde que se focam na prevenção primária e secundária.
Este é claramente um desafio que envolve a participação da sociedade civil e de organizações com experiência, prática e competência demonstrada nestas áreas.
Diria que o postulado já não é apenas que “cada português deve ter um médico de família” e sim que “cada português deve ter acesso a uma rede de cuidados de saúde integrados, hospitalares e não hospitalares, que o ajudem a gerir melhor o seu percurso na doença”.
.HN – Muitos doentes acreditam que não estão mais em risco após sobreviverem a um primeiro evento cardiovascular. Que estratégias considera mais eficazes para alterar essa perceção errada?
CM – Existe a necessidade de incrementar a Literacia em Saúde da população. As ações de Educação e Formação devem começar em idades jovens, nas crianças, prolongando-se ao longo de todo o ciclo de vida, com conteúdos e formatos adequados às especificidades de cada grupo etário.
O abandono da terapia, um problema apontado, tem causas múltiplas bem identificadas. A falta de conhecimento sobre a importância de manter vigilância e controle contínuo sobre os fatores de risco para doença cardiovascular; ausência de políticas no terreno que promovam esse conhecimento, dificuldades no acesso a terapêuticas de benefícios clínicos demonstrados sobretudo nas populações com maior fragilidade económica.
A sociedade deve assumir responsabilidade por tornar mais acessíveis economicamente as terapêuticas com fármacos ou dispositivos que evidenciam ganhos significativos em saúde para a população e que irão ter impacto positivo na comunidade, diminuindo as incapacidades e as mortes precoces.
A existência de programas de apoio continuado, integrando diversos níveis de intervenção e de especialização deve ser um processo contínuo, prolongado no tempo, centrado em percursos clínicos individualizados, direcionados para patologias específicas (Insuficiência cardíaca, fibrilhação auricular, hipertensão arterial). Estratégias a implementar devem ser centradas no doente e suas necessidades, promovendo o autocuidar e a autogestão na saúde e na doença.
A presença cada vez mais constante de dispositivos primariamente não médicos, mas de utilização diária (os chamados “wearables” como pulseiras, relógios, smartphones etc.) que permitem recolher, monitorizar e facilmente partilhar dados clínicos, deve ser incentivada como forma de promover a responsabilização e intervenção direta do cidadão na gestão da saúde e doença.
HN – Como nasceu, que organizações integra e quais os principais objetivos da coligação “Nação Invisível”?
CM – A coligação “Nação Invisível” é uma iniciativa que resulta de uma colaboração entre a Fundação Portuguesa de Cardiologia (FPC), a Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC), a Portugal AVC – União de Sobreviventes, Familiares e Amigos (PT.AVC) e a Novartis.
A coligação “Nação Invisível” tem por objetivo potenciar a intervenção de todos os atores que queiram contribuir para que as DCCV deixem de ser um flagelo para tantas famílias.
É preciso acordar a sociedade civil portuguesa da indiferença face à realidade das DCCV em Portugal, às suas consequências e ao facto de que esta é a principal causa de morte evitável no nosso país. É preciso dar a cidadãos e decisores de saúde a noção de urgência para agir, e do seu poder para alterar a situação hoje. As DCCV são um problema de saúde que em geral pode ser prevenido, tratável e controlável com um impacto relevante na longevidade da população.
Prevenir e controlar as DCCV traduz-se em mais e melhor tempo de vida e, também, na utilização mais eficiente dos recursos em saúde.
HN – Tem a FPC já alinhavadas algumas ações em concreto no âmbito da Coligação “Portugal Invisível?
CM – A FPC há mais de 45 anos que desenvolve regularmente iniciativas em Portugal para modificação de hábitos de vida e promoção de comportamentos saudáveis na população e na promoção de saúde e prevenção das DCCV.
A FPC é reconhecida nacionalmente como um pilar incontornável na implementação de políticas públicas de saúde e de medidas regulatórias que podem contribuir para a prevenção primária e secundária de DCCV.
No âmbito da sua atividade regular que englobe ações multidisciplinares e distribuídas ao longo de todo o ano e por todo o país de rastreios, sensibilização, educação e formação, a FPC assume o compromisso de fornecer informações precisas e desenvolver estratégias eficientes de educação e prevenção para reduzir o impacto das DCCV na sociedade.
Pela sua experiência no terreno e notoriedade reconhecida a FPC pode ser determinante na capacidade de potenciar a voz dos seus parceiros de coligação nas mais diversas iniciações de promovendo o bem-estar e saúde nos portugueses.
O objetivo final é que esta “nação Invisível” contribua para que na sociedade a saúde cérebro-cardiovascular assuma caráter de urgência e prioridade máxima, condicionando a atenção dos decisores políticos e determinando a aplicação de intervenções efetivas e rápidas, para que num horizonte temporal próximo as DCCV deixem de ter o enorme impacto que presentemente tem, permitindo mais e melhor tempo de vida na população portuguesa.
HN – Por que é importante sensibilizar não apenas a população, mas também os profissionais de saúde e os decisores políticos?
CM – Ações como o aumento de impostos e proibição de propaganda sobre produtos como o tabaco e alimentos não processados, o apoio a programas de cessação de tabagismo, políticas de incentivo à prática regular de atividades físicas e à alimentação saudável têm mostrado resultados positivos na redução da incidência das DCCV e reforçam a importância da intervenção sobre os decisores políticos para que possam ser vetores efetivos destas importantes estratégias preventivas.
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