Sistemas de Informação e Recursos Materiais: O Calcanhar de Aquiles das USF

18 de Outubro 2024

Estudo revela falhas crónicas nos sistemas informáticos e falta de material básico nas Unidades de Saúde Familiar, comprometendo a qualidade dos cuidados prestados aos utentes.

Um estudo recente sobre o estado atual dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal revela problemas crónicos nos sistemas de informação e na disponibilidade de recursos materiais nas Unidades de Saúde Familiar (USF), comprometendo seriamente a qualidade dos cuidados prestados aos utentes.
O relatório, que faz parte de uma série de estudos anuais iniciados em 2009, destaca que a quase totalidade (99,6%) das USF enfrentou momentos de indisponibilidade das aplicações informáticas no último ano. Em mais de 90% das unidades, estas falhas ocorreram mais de três vezes, com 55,9% relatando mais de onze ocorrências. Ainda mais preocupante é o facto de 18,3% das USF terem experimentado mais de cinquenta falhas no sistema ao longo do ano.
Estas interrupções nos sistemas informáticos não são meros inconvenientes técnicos. De acordo com o estudo, em 97,5% das USF, estas falhas perturbaram diretamente a qualidade dos cuidados prestados. Isto representa um problema grave, pois afeta o acesso ao processo clínico dos utentes, à informação clínica existente ao nível hospitalar, e à possibilidade de realizar prescrições informáticas ou aceder a resultados de exames.
A resolução destes problemas técnicos também se revela insatisfatória. Embora na maioria dos casos a indisponibilidade seja resolvida no mesmo dia, há atrasos significativos. Em 7% dos casos, a resolução só ocorre no dia seguinte, e em 4,7% das situações, apenas 48 horas depois.
Os coordenadores das USF são claros em sua avaliação: os equipamentos e programas informáticos disponibilizados não são adequados às necessidades. A interoperabilidade entre os sistemas é um ponto particularmente crítico, com 71,8% dos coordenadores expressando forte discordância quanto à sua adequação.
O apoio técnico também é alvo de críticas. Embora 34,6% dos coordenadores considerem o apoio técnico informático na Unidade Local de Saúde (ULS) como o mais adequado, 42,4% discordam desta avaliação. A situação é ainda pior quando se trata do apoio prestado pelo Servicedesk da SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde), com 52% dos coordenadores discordando da sua adequação.
A transição para a telemedicina, acelerada pela pandemia de COVID-19, também enfrenta obstáculos. A maioria das USF (59,5%) considera não dispor do material necessário para realizar teleconsultas de forma adequada. Embora haja uma tendência de melhoria desde 2021/22, este ainda é um ponto que requer atenção e investimento.
Além dos problemas com os sistemas de informação, as USF enfrentam desafios significativos relacionados com os recursos materiais. A maioria dos coordenadores mostra-se insatisfeita com os recursos materiais clínicos disponibilizados pela administração. Mais de 56% discordam da adequação dos equipamentos clínicos básicos, como esfigmomanómetros, otoscópios, balanças, frigoríficos e termómetros.
A situação é ainda mais crítica quando se trata de equipamentos mais avançados. Apenas 5,3% das USF concordam que têm a possibilidade de realizar análises rápidas/point of care de forma adequada em suas instalações. Esta lacuna limita significativamente a capacidade das USF de fornecer cuidados abrangentes e eficientes aos seus utentes.
As instalações físicas das USF também são motivo de preocupação. Cerca de metade dos coordenadores (43,8%) considera que sua USF não tem instalações adequadas para o exercício da atividade dos profissionais de saúde. Além disso, 68,8% afirmam não ter a possibilidade física de realizar circuitos diferenciados para doença aguda e consulta programada, uma medida importante para o controle de infecções e gestão eficiente do fluxo de pacientes.
Os sistemas de climatização também são alvo de críticas, com 55% dos coordenadores considerando-os inadequados. Este resultado é particularmente preocupante, pois representa o pior cenário desde o início da realização deste estudo.
Um dos problemas mais críticos identificados é a falta de material básico para a atividade normal de uma USF. Surpreendentemente, 93,9% das unidades enfrentaram esta situação durante 2023/24. Mais alarmante ainda é o facto de que a reposição deste material ocorreu no próprio dia e sem atrasos importantes em apenas 3,4% das USF. Estes dados demonstram uma falência significativa no sistema de aprovisionamento dos Cuidados de Saúde Primários, uma situação que não melhorou com a implementação do modelo de Unidades Locais de Saúde (ULS).
Embora tenha havido uma ligeira melhoria em relação ao ano anterior, com uma diminuição de cerca de 10% nas USF que reportam faltas de material mais de dez vezes no ano (40,7% atualmente contra 50,2% no ano anterior), a situação continua crítica. Apenas 6,1% das USF não tiveram nenhuma falha de material, e o tempo para resolução destas falhas aumentou, com 83,7% das USF reportando agora atrasos superiores ou iguais a 48 horas.
A implementação das ULS, que deveria ter melhorado a situação, parece não ter surtido o efeito desejado. A maioria dos coordenadores (59,2%) considera que a resposta das ULS aos problemas que dependem da sua intervenção não é adequada nem rápida o suficiente.
Estes problemas com sistemas de informação e recursos materiais têm um impacto direto na qualidade organizacional das USF. O estudo revela uma deterioração neste aspecto, que pode ser parcialmente explicada pela transição automática de USF modelo A para modelo B, sem a necessidade de cumprir os parâmetros que anteriormente eram exigidos para atestar a maturidade da equipa.
Esta transição apressada resultou em uma menor percentagem de USF com manual de boas práticas para todas as áreas importantes (agora 59,3%). Ainda mais preocupante é o facto de que apenas 23,8% das USF possuem um manual de articulação com a ULS, um instrumento fundamental para a integração e coordenação dos cuidados.
A autonomia das USF, um pilar fundamental do seu funcionamento, também parece estar em risco. Mais de metade das USF (54,5%) considera que a ULS em que se integram não respeita a sua autonomia. Esta perceção põe em causa um dos princípios basilares da organização das USF e pode comprometer a qualidade dos cuidados prestados aos cidadãos.

PR/HN/MMM

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