Pedro Maciel Barbosa: “O SNS possui uma dimensão ética e afetiva”

10 de Dezembro 2024

O Observatório da Fundação para a Saúde apresentou hoje o seu relatório sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS), numa iniciativa que visa analisar e comunicar de forma abrangente e compreensível o futuro e a transformação necessária do sistema de saúde português.

Pedro Maciel Barbosa, fisioterapeuta e membro dos corpos sociais da Fundação para a Saúde, apresentou hoje o Relatório do Observatório da Fundação Nacional de Saúde, uma iniciativa que pretende analisar e comunicar de forma ampla e compreensível o futuro e a transformação necessária do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

A apresentação decorreu no Auditório João Lobo Antunes da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde Barbosa começou por explicar que o objetivo desta iniciativa é realizar uma análise abrangente e comunicá-la de forma compreensível. O orador salientou que a discussão sobre o SNS e o seu futuro tem ficado frequentemente limitada a uma lógica de público versus privado, o que não reflete a complexidade da questão, defendeu.

Barbosa defendeu que é necessário olhar para a despesa pública e perceber que o recurso ao setor privado e social já é uma realidade há muito tempo. Esta situação gera uma sensação de frustração, pois um tema que deveria envolver a participação cívica e a construção coletiva acaba por ser reduzido a aspetos muito limitados.

O Observatório procurou estabelecer um conjunto de expectativas para o desenvolvimento do sistema de saúde português, nomeadamente para o SNS, comparando-as com a realidade e a execução das políticas. Barbosa sublinhou que as conclusões apresentadas não são definitivas, mas sim pontos de partida para uma discussão mais ampla.

O orador sublinhou que o SNS tem uma particularidade importante: além da sua dimensão técnica, possui também uma dimensão ética e afetiva, representando um espaço coletivo que pertence a todos os cidadãos. Estas dimensões fazem parte do contrato social partilhado pela sociedade portuguesa.

Barbosa argumentou que transformar o SNS não significa construir um novo sistema do zero, mas sim implementar um processo de mudança que acompanhe a evolução das necessidades ao longo do tempo. Caso contrário, corre-se o risco de ter impulsos de transformação seguidos de estagnação, sem um planeamento estratégico adequado.

O fisioterapeuta destacou que é fundamental clarificar em que assenta este compromisso social e contratual para se poder enquadrar adequadamente a discussão sobre o SNS. O ponto central deve ser sempre as pessoas, pois o SNS deve garantir as necessidades, expectativas, aspirações e segurança dos cidadãos.

Barbosa afirmou que o SNS deve ser o centro de gravidade do sistema de saúde, servindo e enquadrando as necessidades da população. Embora não exclua a complementaridade com o setor social e privado, o orador defendeu que esta estratégia de cooperação deve ser explícita e clara. Atualmente, esta cooperação não é transparente, o que leva a situações problemáticas, como transferências de pacientes entre setores sem uma adequada continuidade de cuidados.

O relatório apresentado pelo Observatório analisou o ciclo político anterior, marcado pela crise económica, a pandemia e o período pós-pandemia. Barbosa salientou a importância de olhar para todo o percurso de vida das pessoas, não apenas para os idosos ou para a população em idade ativa. O orador chamou a atenção para os cuidados na infância e juventude, que muitas vezes são esquecidos nos discursos políticos e na reflexão sobre os serviços de saúde.

Barbosa identificou dois tipos de pessoas no contexto do SNS: os utilizadores dos serviços, que são simultaneamente proprietários do sistema, e os profissionais de saúde, que são cidadãos internos do serviço, responsáveis pela sua execução e, ao mesmo tempo, potenciais beneficiários.

O orador apontou alguns aspetos críticos do sistema atual. Um deles é o afastamento da organização em relação ao seu vínculo fundamental: o centro de saúde. Barbosa defendeu que as decisões estão a ser tomadas cada vez mais longe das pessoas, o que dificulta a resposta às suas necessidades reais.

Outro ponto destacado foi a necessidade de implementar uma gestão mais eficaz, tanto no setor público como no privado, com uma remuneração baseada no desempenho. Barbosa mencionou também a importância de melhorar os sistemas de informação, permitindo aos profissionais partilhar dados e pensar sobre os pacientes de forma conjunta. A comunicação com o cidadão também deve ser aprimorada, através de um portal do SNS mais eficaz e acessível.

O fisioterapeuta abordou ainda a questão da inovação, defendendo uma adoção mais rápida de novas tecnologias nos cuidados de saúde. Chamou a atenção para a lacuna existente na direção clínica integrada, defendendo que a atual fragmentação entre cuidados hospitalares e primários dificulta uma abordagem holística dos cuidados de saúde.

Barbosa criticou a Lei de Bases da Saúde de 2019, afirmando que a discussão ficou demasiado centrada na questão das Parcerias Público-Privadas (PPP), quando na realidade a participação do setor privado é já uma realidade incontornável. Apontou também falhas no Plano Nacional de Saúde, que não apresenta métricas de qualidade claras e tem dificuldade em estabelecer metas concretas até 2030.

O orador destacou a importância do recém-criado Quadro de Referência do SNS, uma inovação que permite um planeamento plurianual do desenvolvimento e investimento no sistema de saúde. No entanto, lamentou que este instrumento não esteja a ser suficientemente discutido na comunicação social e entre os agentes do setor.

Barbosa abordou também a questão da autonomia, referindo que se ouve repetidamente pedidos de maior autonomia tanto dos cuidados primários como dos hospitais. Contudo, defendeu que não se está a discutir como esta autonomia pode ser implementada de forma a melhorar efetivamente os serviços prestados aos cidadãos.

O relatório apresentado pelo Observatório analisou 15 categorias consideradas fundamentais para repensar o SNS, comparando as expectativas com as políticas implementadas nos últimos anos. Estas categorias incluem objetivos financeiros e não financeiros, modelos de governação, autonomia do SNS, estratégias de cooperação com o setor privado e social, organização e gestão, contratualização baseada no desempenho, desenvolvimento da força de trabalho, sistemas de informação, acesso aos cuidados, integração de cuidados, e planos locais de saúde.

Para cada categoria, o relatório utilizou um sistema de semáforos para classificar o grau de conformidade com as expectativas: verde para conforme, amarelo para próximo das expectativas, vermelho para desconforme, e cinzento para situações não aplicáveis (como durante o período pandémico).

Barbosa destacou alguns pontos positivos, como o investimento no Portal da Transparência em Saúde, que disponibiliza dados compreensíveis e consumíveis por todos, tornando o processo de transformação do SNS mais eficaz e escrutinável. No entanto, apontou também áreas que ficaram aquém das expectativas, como a falta de um quadro legislativo claro para a governação do SNS durante quatro anos.

O orador elogiou algumas iniciativas recentes, como a criação do estatuto do SNS, que estabeleceu a autonomia do sistema como instituto público especial, e a nomeação de uma direção executiva com um currículo adequado às funções. Contudo, criticou a falta de envolvimento e fundamentação na implementação de algumas medidas, como a criação das Unidades Locais de Saúde.

Barbosa abordou a questão do acesso aos cuidados de saúde, lembrando que a Lei de Acesso foi implementada em 2007, mas a sua monitorização tem sido insuficiente. Destacou a prioridade dada pelo atual governo ao acesso, especialmente na área da oncologia, mas alertou para o risco de se procurarem soluções fora do SNS sem explorar adequadamente a capacidade instalada no sistema público.

O fisioterapeuta chamou a atenção para a necessidade de se refletir sobre como o SNS pode crescer e melhorar a sua eficiência, em vez de simplesmente transferir responsabilidades para outros setores. Defendeu uma cooperação transparente e explícita entre o setor público, privado e social, mas sempre com o SNS como centro do sistema de saúde.

Barbosa destacou a importância de recentrar a discussão no conceito de centro de saúde, lembrando que esta ideia é anterior à própria criação do SNS e representa uma abordagem centrada na comunidade e na família. Lamentou que este conceito tenha desaparecido do discurso político e da gestão do SNS, argumentando que é fundamental recuperá-lo para uma transformação eficaz do sistema.

O orador criticou a lógica cada vez mais hospitalocêntrica do SNS, que leva a soluções como a internalização de equipas hospitalares nos cuidados primários, em vez de reforçar a capacidade resolutiva destes últimos. Defendeu uma abordagem mais integrada e centrada na comunidade, com um papel reforçado para profissionais como nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e médicos dentistas ao nível dos cuidados primários.

Barbosa abordou ainda a questão da governação clínica, argumentando que o modelo atual perdeu a sua eficácia nas últimas décadas. Defendeu uma lógica mais próxima das pessoas, com maior integração entre os vários níveis de cuidados e profissionais.
O fisioterapeuta criticou a criação dos Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) para atendimento de doença aguda de baixa complexidade, argumentando que esta solução pode criar duplicação de serviços e não resolve o problema fundamental do acesso aos cuidados primários.

Barbosa concluiu a sua apresentação destacando quatro desafios fundamentais para o futuro do SNS: a crise de acesso aos cuidados, ligada à dificuldade em reter e atrair profissionais; a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre o Plano de Emergência para a Transformação do SNS; a importância do Quadro Global de Referência como instrumento de planeamento e gestão estratégica; e o acompanhamento da implementação das Unidades Locais de Saúde.

O orador defendeu que é fundamental mobilizar toda a sociedade para apoiar e participar na transformação do sistema de saúde, envolvendo cidadãos, profissionais, setor económico, financeiro e comunicação social defendendo que as imperfeições da democracia se combatem com mais democracia, não com menos, e que o Observatório da Fundação para a Saúde pretende ser mais uma ferramenta para garantir a disponibilidade de informação clara e compreensível sobre o SNS.

Finalizando, Barbosa agradeceu o envolvimento de todos os presentes e anunciou que o relatório completo será divulgado nos próximos dias. Reiterou o compromisso do Observatório em continuar a acompanhar o processo de transformação do SNS, focando-se nos aspetos críticos identificados e mantendo sempre como prioridade o compromisso social coletivo centrado no Serviço Nacional de Saúde.

MMM

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