Ana Paula Gato defende fortalecimento dos centros de saúde no SNS

11 de Dezembro 2024

Ana Paula Gato, enfermeira e professora coordenadora na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, apresentou  uma análise detalhada do Relatório do Observatório da Fundação Nacional de Saúde, numa iniciativa realizada no Auditório João Lobo Antunes da Faculdade de Medicina de Lisboa. A sua intervenção focou-se na importância dos centros de saúde como pilar fundamental do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e na necessidade de reforçar os cuidados de proximidade.

A professora iniciou a sua apresentação elogiando o relatório, descrevendo-o como um retrato abrangente das políticas públicas de saúde e do SNS, bem como uma análise crítica da governação e governança em saúde na última década. Destacou que o documento apresenta argumentos bem fundamentados e inclui várias sugestões para o futuro, baseadas em dados fiáveis e evidência científica.

Ana Paula Gato salientou que muitas das propostas apresentadas no relatório são exequíveis, algumas das quais já foram experimentadas no passado e descontinuadas sem motivo aparente. A professora lamentou esta perda de memória histórica dos cuidados de saúde primários, mencionando exemplos como as intervenções de resposta rápida pelos centros de saúde e o desenvolvimento de competências em áreas como a saúde oral e os meios complementares de diagnóstico e terapêutica.

Recordando a sua experiência pessoal, a enfermeira partilhou que há cerca de 30 anos, os centros de saúde ofereciam cuidados de saúde oral, serviços de radiologia e até mesmo a possibilidade de realizar eletrocardiogramas nos serviços de atendimento permanente. Lamentou que estas capacidades tenham sido perdidas ao longo do tempo.

Um dos pontos que a professora destacou do relatório foi a análise do papel das autarquias na saúde. O documento aponta para a necessidade de parcerias entre os municípios e os serviços de saúde, um tema que, segundo Ana Paula Gato, merece atenção significativa. A enfermeira alertou para o facto de vários municípios estarem a assumir uma interpretação própria das competências que lhes foram atribuídas, posicionando-se como prestadores diretos de cuidados em vez de parceiros dos serviços de saúde. Esta postura, na sua opinião, pode levar a uma concorrência ou complementaridade às unidades do SNS que não é desejável.

A professora expressou preocupação com esta tendência, lembrando os resultados pouco positivos da municipalização de alguns serviços de saúde de proximidade durante o Estado Novo. Alertou para o risco de se retroceder no tempo, comprometendo os ganhos em saúde alcançados nas últimas décadas.

Por outro lado, Ana Paula Gato elogiou o compromisso expresso no relatório para o desenvolvimento do sistema de saúde, destacando a centralidade das pessoas e das suas necessidades e expectativas. Sublinhou que este foco inclui tanto as pessoas que são cuidadas como os profissionais de saúde. A enfermeira reforçou a importância da cooperação entre os setores público, social e privado, mas enfatizou a necessidade de clarificar os termos dessa cooperação.

Um dos aspectos que a professora considerou particularmente positivo foi a análise e defesa do papel do centro de saúde como entidade central do SNS. Destacou o capítulo do relatório intitulado “Pessoas, comunidade e saúde local”, considerando-o fundamental para a compreensão da importância dos cuidados de proximidade.

Ana Paula Gato sublinhou a necessidade de recuperar o conceito e a entidade do centro de saúde, valorizando o seu papel na prestação de cuidados de proximidade. Lembrou que o centro de saúde é, desde 1961, uma forma de concretizar a saúde local, um conceito que, embora ainda não completamente definido, é central no relatório apresentado.

A enfermeira explicou que a saúde local é essencial para a concretização de conceitos mais amplos como “Uma Só Saúde”, “Saúde Planetária” e “Saúde Global”. Argumentou que estes conceitos só podem ser realizados localmente, com as pessoas, através de estratégias e planos locais de saúde, e da cooperação e parcerias comunitárias.

Ana Paula Gato destacou várias formas de participação comunitária que têm se revelado positivas em alguns concelhos, como a participação nos Conselhos Locais de Ação Social, a construção de planos municipais de saúde, as comissões locais de saúde, as equipas de intervenção no âmbito das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, e projetos nas áreas de saúde escolar, saúde mental, saúde das pessoas idosas e saúde ambiental.

A professora enfatizou que o centro de saúde concretiza cuidados de proximidade precisamente nos locais onde as pessoas vivem e trabalham, alinhando-se com a definição de cuidados de saúde primários. Explicou que os centros de saúde conhecem as autarquias, as famílias, as instituições comunitárias e as empresas, podendo, através das suas diferentes unidades, manter a população em comunicação contínua e assegurar uma vasta gama de cuidados que respondem à maior parte das necessidades de saúde da população.

Ana Paula Gato concordou com a afirmação do relatório de que os centros de saúde são, com ou sem Unidade Local de Saúde, a base do SNS e da saúde da população. Acrescentou que, neste contexto, devem ser aproveitadas as competências dos vários profissionais de saúde, que ainda hoje não estão completamente utilizadas.

A enfermeira sugeriu alguns aspectos que poderiam ser mais aprofundados em futuros relatórios. Entre eles, destacou a necessidade de dar maior visibilidade às questões dos cuidados prestados a famílias ou populações em risco de pobreza e exclusão social, lembrando que um em cada cinco portugueses se encontra nessa situação. Mencionou também a importância de abordar os cuidados a idosos isolados e dependentes, reclusos, pessoas com deficiência ou doença mental, e trabalhadores através dos serviços de saúde ocupacional.

Além disso, a professora sugeriu que fossem discutidas as respostas perante doenças emergentes e crises climáticas, bem como os cuidados a uma população cada vez mais culturalmente diversa. Ana Paula Gato considerou que a abordagem ao serviço de saúde pública poderia ser mais aprofundada, reconhecendo, no entanto, a dificuldade em encontrar evidências que permitam um tratamento mais extenso do tema.

A enfermeira expressou preocupação com a tendência de concentração dos serviços de saúde pública em unidades únicas nas capitais de distrito, como no caso das Unidades Locais de Saúde. Argumentou que esta centralização dificulta o conhecimento da realidade de saúde das populações e a capacidade de resposta aos atuais desafios em saúde pública.

Quanto aos contributos do relatório para o debate e para a implementação de melhorias nas políticas públicas de saúde, Ana Paula Gato considerou que os seus maiores méritos são tornar visíveis as dificuldades e incongruências das políticas atuais. Citou como exemplo a discrepância entre a percentagem dos gastos em saúde na rede de cuidados continuados integrados e nos cuidados de prevenção e promoção da saúde.

A professora elogiou o facto de o relatório trazer para o debate o exemplo da constituição das Unidades Locais de Saúde sem evidência clara de que esse modelo organizacional proporciona mais ganhos em saúde. Destacou também a análise dos efeitos da integração dos cuidados de saúde primários nessas unidades.

Ana Paula Gato sublinhou que o relatório aponta caminhos que implicam escolhas bem fundamentadas e a necessidade de inscrição do conhecimento na governação em saúde. Enfatizou a importância de que nem os utentes nem os profissionais se sintam deslocados no sistema de saúde.

A enfermeira concluiu a sua intervenção afirmando que o relatório apresentado é também um alerta moral. Advertiu contra a tentação de transformar o sistema de saúde português num mercado, entregando às populações mais vulneráveis à caridade e aumentando as iniquidades no acesso aos cuidados de saúde.

Ana Paula Gato reafirmou que o SNS é um dos investimentos com maior retorno da democracia portuguesa e um dos seus pilares fundamentais. Destacou que o SNS concretiza o cuidado e a compaixão, valores centrais que se manifestam através do trabalho dos centros de saúde.

A professora encerrou a sua apresentação reiterando a importância dos cuidados de proximidade e do papel central dos centros de saúde no SNS. Apelou para que as recomendações do relatório sejam consideradas seriamente pelos decisores políticos e pelos gestores do sistema de saúde, de modo a fortalecer os cuidados de saúde primários e a melhorar a saúde da população portuguesa.

MMM

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