Healthnews (HN) – Como avalia o conflito entre liberdade individual e saúde pública no contexto das medidas de controlo do tabaco?
Professora Mafalda Carmona (MC) – Ambas estão a perder. Há duas formas de lidar com o problema do tabaco: a de apenas aceitar a abstinência, que equivale a rejeitar toda e qualquer forma de consumo de nicotina (a não ser, claro, as que são “medicamentos”, em pastilhas, pensos e afins), ou a de aceitar a redução de danos: o ótimo é inimigo do bom, e já é bom que as pessoas mudem para formas menos nocivas de consumo de nicotina. Que são efetivamente menos nocivas: no estudo que o Governo inglês fez (um estudo de revisão de todos os estudos existentes sobre vaping), chegou à conclusão de que o vaping é 95% menos nocivo que fumar um cigarro.
Portugal, infelizmente, alinha pela ideia de abstinência: nem cigarros tradicionais, nem tabaco aquecido, nem vaping – nada é aceitável aos olhos da Lei do Tabaco e aos olhos da DGS, que trata tudo como “fumar”. Se for a uma consulta para cessação tabágica no “SNS” inglês, os cigarros eletrónicos (os “vapes”) são apresentados ao lado de outros métodos de cessação tabágica. Em Portugal, a DGS trata o vaping como tabaco, e a lei faz tudo para desincentivar o seu consumo. A DGS não faz sequer um esforço de informação aos cidadãos das alternativas de que dispõem (ou sequer de conhecimento sério das alternativas – há mais de dez anos que oiço o “não há estudos”, quando a verdade é que os há). E isto não é só atentatório da nossa liberdade, é também, paradoxalmente, atentatório da saúde pública. É que a tal política de abstinência também é conhecida como a política “quit or die” – se a única via é a abstinência, o que acontece a quem não a consiga ou a quem, legitimamente, não a queira?
HN – Que paralelos podemos traçar entre as atuais políticas antitabaco e medidas históricas como as implementadas em regimes totalitários?
MC – Há que ter cuidado com as comparações, pois nós vivemos num Estado de Direito democrático que nada tem a ver com esses regimes totalitários; mas é um facto que este ideal da abstinência marcou presença em regimes totalitários de má memória. Há também aqui uma influência religiosa, que se vê, por exemplo, no “movimento pela temperança” americano, que deu origem à “Lei Seca”. O ideal da abstinência anda de mãos dadas com o proibicionismo.
HN – Na sua opinião, as restrições ao consumo de tabaco em espaços públicos são justificáveis ou constituem uma intromissão excessiva na liberdade individual?
MC – As restrições são justificadas quando visam evitar danos a terceiros. Acho bem que haja espaços fechados livres de fumo; mas porque não pode haver espaços fechados só para fumadores? A justificação para restringir a liberdade tem de ser esta, a do dano a terceiros, não a do incómodo. E esta parte é importante: se queremos viver numa sociedade livre, temos de aceitar que o outro seja diferente de nós, sendo que com essa diferença vem o incómodo. Há quem fique incomodado com o fumo de tabaco numa esplanada, e há quem fique incomodado com o cheiro a carne grelhada porque é vegan… A liberdade incomoda, temos de saber viver com isso, porque a alternativa é bem pior.
HN – Considera que o conceito de “desnormalização” do tabaco é uma estratégia legítima de saúde pública ou uma forma de estigmatização dos fumadores?
MC – É uma forma de estigmatização, e é inaceitável. As restrições vão muito para além do que é necessário para proteger terceiros, visam fazer os fumadores ser mal vistos aos olhos da sociedade e, em poucas palavras, tornar a vida tão difícil aos fumadores que estes acabem por desistir. Acho bem que se proíba o fumo em locais de trabalho; mas porque é que também se proíbe que haja uma sala só para fumadores? Se o objetivo das restrições fosse apenas proteger terceiros, e não “apertar o cerco” aos fumadores, as leis teriam alguma preocupação de proporcionalidade nas restrições e não têm.
HN – Como analisa a evolução da Lei do Tabaco em Portugal desde 2007 até às suas mais recentes alterações?
MC – Sempre foi uma lei de “desnormalização” do tabaco, nunca uma lei apenas preocupada com a proteção de terceiros (apesar, claro, de não assumir o propósito de desnormalização). E o caminho tem sido sempre o de acrescentar proibições. Igualmente grave, não distingue entre cigarros tradicionais e formas menos nocivas, porque é cega a qualquer ideia de redução de risco. No vaping não há tabaco, nem fumo; mas para a lei somos todos fumadores. Isto implica que a DGS não tenha sequer conhecimento sobre a realidade: do número de “fumadores” que existe em Portugal, quantos mudaram para o tabaco aquecido, quantos são vapers? Era importante saber isto – e saber também se o consumo de cigarros tradicionais tem vindo a cair ou não.
Acho que a DGS tem feito um péssimo trabalho; o tabagismo deveria estar no ICAD (antigo SICAD), responsável por Portugal ter sido pioneiro na redução de risco em estupefacientes. Nisso, somos o exemplo lá fora. Olhamos para a política em matéria de tabaco, e parece que falamos de dois países diferentes.
HN – Que implicações éticas e jurídicas vê na abordagem do “paternalismo liberal” aplicada às políticas de controlo do tabaco?
MC – O “paternalismo liberal” é tão paternalista quanto qualquer outro. Assenta na ideia de que o Estado é que sabe o que é melhor para os cidadãos, sabe melhor do que nós próprios. Isto é uma menorização dos cidadãos e uma total inversão do modelo de Estado em que vivemos, em que são os cidadãos que votam e escolhem quem querem no Estado. O Estado tem de nos tratar como adultos, porque somos nós que votamos em quem está no Estado.
HN – Em que medida as medidas antitabaco podem ser vistas como um precedente para intervenções estatais noutros comportamentos individuais?
MC – Agora a “cruzada” é contra o tabaco, depois pode ser outra coisa qualquer. O álcool é sempre um bom candidato, mas há outros; há uns tempos clamava-se: “sugar is the new tobacco”… Esta linha vermelha, de que o Estado não se pode arrogar saber melhor do que nós o que é bom para nós, não devia ser ultrapassada. Mas, infelizmente, as pessoas já foram mais aguerridas na defesa da sua liberdade. Nos anos 70, em Inglaterra, houve uma acalorada discussão sobre o uso obrigatório de capacetes e de cintos de segurança… E duvido que no pós-Segunda Guerra Mundial, este ímpeto de desnormalização do tabaco tivesse tido algum sucesso.
HN – Qual a sua perspetiva sobre o objetivo da Organização Mundial de Saúde de alcançar um “mundo livre de tabaco” até 2040?
MC – Livre de tabaco, de nicotina, de vapor… A OMS tem este ideal (de há muito, porque a data está sempre a ser adiada…) de abstinência a nível mundial. Que alternativas sobram? “Quit or die!”. Este ideal da OMS custa vidas.
A OMS tem feito um esforço, lamentável, para combater a redução de risco no tabaco. Há países em que o vaping foi proibido e a OMS vê isso como positivo. E tudo o que a OMS diz, a nossa DGS repete. A OMS vale-se da sua boa imagem pública mas, no que toca ao tabaco, é absolutamente fundamentalista. Dou-lhe um exemplo: em pleno conflito da Síria, no meio de toda aquela desgraça, a OMS veio dizer que estava muito preocupada porque o consumo de tabaco entre os sírios estava a aumentar. Se não tivesse lido isto no site da OMS, não acreditava (e ainda lá está).
Entrevista MMM
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