António Ricardo Miranda Associação OUVIR

“Audismo vs surdismo: o direito de ouvir e a complexidade da identidade surda”

02/11/2025

A comunicação é uma das bases fundamentais da existência humana. Desde os primeiros momentos de vida, o som faz parte do nosso desenvolvimento, permitindo-nos interagir, expressar emoções e compreender o mundo à nossa volta. No entanto, quando a audição é comprometida, a forma como nos comunicamos e nos integramos na sociedade pode tornar-se um desafio.

A minha experiência pessoal é um exemplo disso. Perdendo progressivamente a audição desde a adolescência, devido a uma condição genética – otosclerose –, fui confrontado com a realidade de um mundo que muitas vezes encara a deficiência auditiva como um fator de separação entre dois grupos distintos: aqueles que ouvem e aqueles que não ouvem. Com o tempo, tornei-me utilizador de um implante coclear e de uma prótese auditiva potente, tecnologias que me permitiram manter o contacto com os sons que sempre fizeram parte da minha vida.

Diante desta experiência, quero refletir sobre um debate que tem vindo a ganhar força nos últimos anos: a dicotomia entre audismo e surdismo. Este conflito não se resume apenas à forma como a sociedade encara as pessoas surdas, mas também à forma como estas próprias pessoas se percecionam e definem a sua identidade.

O que é o Audismo e o Surdismo?

O termo audismo refere-se à discriminação contra pessoas surdas em função da sua incapacidade de ouvir e falar oralmente. Implica a valorização da audição como a norma e a desvalorização da Língua Gestual como meio de comunicação legítimo. Muitas comunidades surdas defendem que o audismo está enraizado na sociedade e que os surdos são frequentemente marginalizados por não se enquadrarem no modelo predominante de comunicação.

Por outro lado, o surdismo é uma visão que coloca a surdez não como uma deficiência, mas como uma identidade cultural e linguística. Para muitas pessoas surdas que usam a Língua Gestual Portuguesa (LGP), a surdez não é algo que precisa de ser corrigido, mas sim algo a ser valorizado. Algumas dessas pessoas são críticas da reabilitação auditiva, considerando-a uma tentativa de assimilação a uma sociedade que privilegia a oralidade.

O grande dilema entre estas perspetivas é a forma como cada indivíduo vivencia a sua própria condição e escolhe o caminho que melhor lhe serve.

O Direito de Ouvir e a Importância da Audição na Comunicação

Enquanto pessoa com deficiência auditiva que usa tecnologia para ouvir, vejo com perplexidade a narrativa que sugere que a reabilitação auditiva é um atentado à cultura surda. Ouvimos desde o nascimento, crescemos com sons e aprendemos a falar através deles. A audição não é apenas um sentido, mas uma ferramenta essencial para a interação humana.

Os avanços tecnológicos, como os implantes cocleares e as próteses auditivas, devolvem a milhares de pessoas a possibilidade de ouvir, oferecendo-lhes uma nova perspetiva sobre o mundo. Claro que nem todos os surdos se identificam com esta escolha, mas isso não significa que aqueles que optam por recuperar a audição estejam a rejeitar a identidade surda. Muito pelo contrário: trata-se de um direito individual que deve ser respeitado.

A linguagem falada permite não só a comunicação entre ouvintes e surdos reabilitados, mas também o acesso mais fácil à sociedade em geral. Ainda que a LGP seja um meio de comunicação riquíssimo e de extrema importância, é um facto que o mundo em que vivemos está estruturado em torno da oralidade. A audição facilita a aprendizagem de línguas, a interação em espaços públicos e a inclusão no mercado de trabalho sem barreiras adicionais.

A Falsa Ideia de Imposição

É frequente ouvir argumentos de que as crianças surdas são forçadas a usar implantes cocleares contra a sua vontade. No entanto, esta visão ignora um ponto essencial: os pais, médicos e terapeutas auditivos tomam decisões baseadas no bem-estar da criança. Um implante coclear ou uma prótese auditiva não são meros acessórios, mas sim ferramentas que podem proporcionar mais autonomia e oportunidades de inclusão.

Se um adulto surdo escolher não usar estas tecnologias e se identificar unicamente com a cultura surda, essa decisão deve ser respeitada. Mas também deve ser respeitada a escolha daqueles que, como eu, não abdicam da possibilidade de ouvir. Não se trata de uma imposição, mas sim de uma oportunidade.

A Importância do Respeito Mútuo

O verdadeiro problema não está na existência do audismo ou do surdismo, mas sim na incapacidade de alguns setores de ambos os lados aceitarem que a surdez é uma experiência diversa. Nem todos os surdos querem ser ouvintes, e nem todos os surdos querem depender exclusivamente da Língua Gestual.

Infelizmente, já fui alvo de críticas de pessoas da comunidade surda por optar por usar um implante coclear. Para alguns, sou visto como alguém que “renega” a identidade surda. Mas a minha identidade não se resume à minha deficiência. O meu desejo de ouvir não anula a minha compreensão das dificuldades enfrentadas pela comunidade surda, nem diminui a minha empatia por aqueles que comunicam de forma diferente.

O verdadeiro desafio está na aceitação da diversidade dentro da própria deficiência auditiva. Precisamos de uma sociedade que não veja a surdez como um impedimento absoluto nem a audição como uma norma rígida. Devemos reconhecer o valor da Língua Gestual e, ao mesmo tempo, valorizar os avanços da ciência que permitem que muitos de nós continuem a ouvir.

Conclusão: A Inclusão Passa pela Escolha

Afinal, o que significa ser surdo? Ser surdo é mais do que não ouvir. É viver com uma condição que pode ser encarada de diferentes formas, sem que nenhuma dessas abordagens seja errada. O audismo e o surdismo tornam-se problemáticos quando impõem uma única perspetiva sobre o que significa ser surdo.

O verdadeiro caminho para a inclusão passa pelo respeito mútuo e pela aceitação da escolha individual. O meu desejo de ouvir não invalida a experiência de quem prefere comunicar por Língua Gestual. Da mesma forma, aqueles que optam por não recorrer à reabilitação auditiva não devem ser marginalizados.

A comunicação, seja através do som ou do gesto, é um direito de todos. E cada um de nós deve ter a liberdade de escolher como quer viver a sua própria surdez.

Opinião Pessoal:

Para o próximo Dia Internacional do Implante Coclear, que se celebra todos os anos no dia 25 de fevereiro, data em que foi colocado o primeiro implante coclear, em 1957 em Paris, pelos médicos franceses André Djourno e Charles Eyriès.

Mais que uma resistência que alguns oferecem, por uma cultura que alimenta o silêncio e o mundo gestual, o implante coclear permite que muitas pessoas que poderiam ser surdas, tenham optado por ouvir, e vencer a barreira da surdez e do silêncio. Acredito num mundo sem estigmas, em que a ciência prevalecerá, tal como este dispositivo médico que foi considerado na década anterior, uma das melhores inovações tecnológicas de sempre. O que de facto é maravilhoso, a devolução ou permitir a continuação em ouvir, a comunicar, e ao mesmo tempo a falar.

NOTA FINAL:

O Implante Coclear é indicado para pessoas com surdez neurossensorial severa a profunda, que não apresentem benefícios com próteses auditivas. O Implante Coclear é um dispositivo médico eletrónico, implantado cirurgicamente, que transforma os sinais sonoros em sinais elétricos. Estes sinais vão estimular diretamente o nervo auditivo promovendo uma sensação auditiva, permitindo à pessoa ter uma audição útil e com bastante qualidade.

A cirurgia dá início ao processo de reabilitação, seguindo-se a ativação do implante, que ocorre 3 a 4 semanas depois. Num primeiro momento surgem as sensações auditivas. Com o tempo, o cérebro procura a melhor adaptação ao estímulo e a qualidade da perceção auditiva aumenta. Contudo, a reabilitação auditivo-verbal e comunicacional, para que o cérebro interprete o som que recebe através do implante coclear, é realizada durante várias semanas ou até meses, sendo o envolvimento e trabalhos diários fundamentais para atingir os resultados desejados e dar continuidade ao trabalho dos terapeutas. Ao fim de alguns meses a um ano, os estímulos e a pouca percepção, dá lugar à excelente discriminação e a uma audição “quase ou próxima” de um ouvinte habitual.

Em Portugal, a primeira cirurgia de implante coclear foi efetuada em 1985, em Coimbra. E este ano, celebra-se a data tão especial de 40o Aniversário, que é uma marca cheia de significado para a Saúde Auditiva em Portugal. Brindemo-la entre os que beneficiam dela, todos os profissionais que possibilitam que seja uma realidade para a melhor qualidade de vida destas pessoas (e não apenas a auditiva!), e à sociedade em geral, que permita com que todos os implantados sejam veiculados à sua inclusão.

 

 

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