O termo “alocar” nasce do latim ad (para) + locus (lugar), significando etimologicamente “colocar no lugar adequado” no contexto apropriado. Assim, alocar recursos em saúde carrega uma dimensão ética intrínseca, tanto do ponto de vista etimológico-conceitual, ao designar a correta destinação ou a melhor utilização dos recursos disponíveis, quanto do ponto de vista operacional, ao referir-se à designação de recursos para “lugares” específicos. Em ambos as abordagens, “alocar” pressupõe a escolha da melhor alternativa de entre as várias possibilidades, baseada em critérios de “bem” e “mal” – processo este que não se restringe a uma decisão puramente técnica, envolvendo também considerações normativas e éticas.
A centralidade desta temática é explicada pelas circunstâncias de uma atualidade marcada pelo crescente recurso da medicina às técnicas cada vez mais sofisticadas (sobretudo em meios de diagnóstico e terapêutica), o envelhecimento da população nos países desenvolvidos, o crescimento demográfico massivo nos países menos industrializados, o aumento da prevalência das doenças crónicas e o agravamento da extrema pobreza.
A definição de critérios éticos para a alocação de recursos em saúde torna-se cada vez mais imperativa à medida que a necessidade destes recursos persiste de forma incontornável. Com efeito, apesar dos reforços orçamentais a que se assistem na maioria dos sistemas nacionais de saúde, a pressão orçamental na saúde continua a intensificar-se, o que evidencia a importância na integração de considerações éticas nas decisões de alocação de recursos, para além dos aspetos técnicos e económicos, de forma a assegurar a sua distribuição justa e equitativa.
Todos os aspetos que justificam esta centralidade tornam os cuidados prestados mais dispendiosos e, concomitantemente, mais escassos. No caso do incremento dos custos dos cuidados prestados, o problema que se coloca é o da “racionalização”; por sua vez, o problema que emerge da escassez de recursos de saúde é o da “acessibilidade”. Em ambos, o problema reside na alocação dos recursos existentes.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) enquadra a saúde no domínio dos direitos humanos, da paz e da segurança. Conforme disposto no preâmbulo da Constituição da OMS, “gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados.”
O direito à saúde é assegurado pelo artigo 64º da Constituição da República Portuguesa (CRP), cabendo ao Estado providenciar um serviço nacional de saúde universal, geral e tendencialmente gratuito. O disposto prevê, assim, uma distribuição equitativa dos recursos no acesso a cuidados de saúde aos cidadãos, independentemente da sua situação económica.
A Lei de Bases da Saúde estipula o enquadramento jurídico fundamental que abrange os valores e princípios essenciais para a proteção e promoção da saúde das pessoas, priorizando a dignidade humano, destacando o direito à proteção da saúde, assegurando a igualdade de tratamento e a não discriminação. É, igualmente, garantido o acesso a cuidados de saúde adequados às necessidades individuais, de forma célere e num período clinicamente aceitável. Adicionalmente, esta legislação defende a gestão dos recursos de saúde baseada na eficácia, eficiência e qualidade, promovendo, não só, uma distribuição equitativa desses recursos, mas também e um acesso justo às inovações no âmbito da saúde, salientando-se a importância atribuída às questões éticas relacionadas com estas inovações.
A tomada de decisão para a alocação de recursos em saúde envolve uma complexa interação de questões éticas e jurídicas, quer no âmbito nacional, quer no contexto internacional. Tais decisões têm implicações significativas na eficácia e eficiência do cuidado de saúde prestado, assim como nos direitos fundamentais dos indivíduos.
Do ponto de vista ético, uma das principais preocupações é a justiça distributiva, que trata da distribuição equitativa de recursos escassos. Este aspeto levanta questões sobre como priorizar certos grupos ou tratamentos em detrimento de outros e como garantir que todos tenham acesso justo aos cuidados de saúde, independentemente de sua situação econômica, social ou demográfica. A equidade na saúde exige uma reflexão profunda sobre os valores que devem guiar a alocação de recursos, nomeadamente a maximização do benefício geral, a priorização das necessidades dos mais vulneráveis e a garantia de um mínimo de cuidados de saúde para todos.
Outro aspeto ético premente é o princípio da autonomia, que se refere ao direito dos indivíduos de tomar decisões informadas sobre seu próprio cuidado de saúde. Na alocação de recursos, tal pode entrar em conflito com decisões baseadas em critérios coletivos ou utilitaristas, que visam o maior bem para o maior número, gerando um dilema ético entre respeitar a escolha individual e atender às necessidades de saúde da população de forma eficiente.
Do ponto de vista jurídico, a alocação de recursos em saúde rege-se por várias normas e regulamentos que visam assegurar a proteção dos direitos individuais e a promoção do bem-estar coletivo. Têm-se, a título de exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os tratados da Organização Mundial da Saúde, que estabelecem diretrizes gerais sobre o direito à saúde e os princípios de equidade e justiça. Estas normas influenciam, por sua vez, as legislações nacionais, que devem equilibrar os direitos à saúde com as limitações orçamentárias e as necessidades de saúde pública.
De acordo com a legislação nacional, as decisões devem respeitar os princípios da transparência e da responsabilidade, para que sejam tomadas de maneira justificada. Face ao crescente reconhecimento do direito à saúde como um direito humano fundamental, esta legislação contempla ainda a obrigatoriedade do Estado em garantir acesso universal aos cuidados de saúde, requerendo, para tal, uma alocação de recursos que o priorize.
Assim, a alocação de recursos em saúde demonstra-se um desafio que exige uma abordagem criteriosa que contemple, por um lado, as necessidades éticas de justiça, equidade e autonomia, não esquecendo, por outro, os imperativos jurídicos, os quais devem estar, por sua vez, em conformidade com normas nacionais e internacionais, de forma a garantir o bem-estar coletivo e respeitar os direitos individuais.
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