Proclama-se a eutanásia como símbolo de autonomia e de avanço civilizacional, mas importa fazer uma pausa crítica e uma reflexão ética profunda. Será progresso eliminar a vida como resposta à fragilidade e ao sofrimento? A dignidade humana não depende da ausência de sofrimento, nem da produtividade social. Como defende Paul Ricoeur, a dignidade é inerente à condição de sujeito, não ao estado clínico ou à sua funcionalidade ainda, ou como recorda Emmanuel Levinas, é no rosto do outro, vulnerável e dependente, que se revela o apelo ético mais radical. O sofrimento não anula a humanidade; convida, antes, ao cuidado e à responsabilidade., Num país onde a oferta de cuidados paliativos continua limitada, a possível legalização da eutanásia levanta uma questão preocupante: estar-se-á a propor a morte como substituto de uma presença que falha? É fundamental ressaltar e dar espaço à ética do cuidar, antes da opção de morrer. Como sociedade, não precisamos de legislar sobre a morte como solução. Precisamos, sim, de aprender a cuidar com competência e compaixão, de serviços que se adaptem às necessidades de cada pessoa e que ofereçam alternativas reais ao desespero, a perda do sentido e ao sofrimento existencial. A medicina tem como missão, como finalidade, proteger e cuidar da vida com sentido, mesmo quando o seu fim se aproxima. Esta visão é respaldada pela Lei n.º 31/2018, de 18 de julho, que consagra os direitos das pessoas em fim de vida, incluindo o direito aos cuidados paliativos, à informação e à recusa de tratamentos inúteis ou desproporcionados e, por isso, inadequados e desnecessários. Temos, portanto, instrumentos legais que garantem autonomia e dignidade sem necessidade de recorrer à antecipação da morte, que nos protegem e que ajudam a promover a nossa dignidade em fim de vida. Mas será uma questão de autonomia ou de abandono? Há quem aplauda a legalização da eutanásia como sinal de maturidade civilizacional. No entanto, essa celebração ignora uma questão de fundo: e se, em nome da liberdade, estivermos a institucionalizar a desistência de cuidar? Como observa Ronald Dworkin, a dignidade reside na capacidade de viver de acordo com os próprios valores. Mas isso exige uma sociedade que ofereça escolhas reais, e não a opção final como substituto da presença, do alívio e do sentido. Quando o sofrimento é acompanhado com humanidade, e não descartado como incómodo, o fim de vida pode ser vivido com serenidade e plenitude. Legislar a eutanásia sem garantir previamente esse acompanhamento é eticamente ambíguo. É obvio que o contexto importa: a fragilidade do sistema é um terreno fértil e o debate sobre a eutanásia tende a polarizar-se. Mas talvez devêssemos começar por outro lado: o que é que este debate revela sobre o estado do nosso sistema de saúde? Um Estado que ainda não assegura o acesso universal aos cuidados primários, à saúde mental, ao controlo eficaz da dor e a cuidados paliativos dignos deve interrogar-se: legislar sobre a morte é avanço… ou é atalho? Oferecer a morte antes de assegurar o cuidado é, no mínimo, um sinal de falência estrutural. A autonomia só é plena quando sustentada por condições materiais e relacionais adequadas. De outro modo, transforma-se em desistência social disfarçada de liberdade individual. Importante não esquecer todos os elementos da equação: Estarão os médicos e outros profissionaispreparados? A eutanásia pode não ser uma violência física, mas é sempre uma fronteira moral. Os profissionais de saúde não enfrentam apenas desafios técnicos, mas dilemas éticos profundos. Estarão disponíveis, não apenas legalmente, mas também emocionalmente, eticamente e existencialmente, para carregar o peso destas decisões? A exposição contínua a decisões de fim de vida sem apoio suficiente pode gerar o chamado burnout moral: o sofrimento interno, sofrimento ético, de quem sabe o que seria certo fazer, mas não encontra meios sistémicos para o concretizar. A eutanásia, nestes casos, deixa de ser uma resposta individual e torna-se um reflexo institucional. Vivemos em comunidade, numa sociedade que se diz civilizada e avançada, mas a civilização também é medida pela capacidade de não abandonar e a eutanásia pode parecer um gesto de compaixão. Mas quando o sistema falha em garantir cuidados paliativos de qualidade, acesso equitativo e apoio humano, oferecer a morte torna-se um atalho, não uma solução. A verdadeira civilização não se mede pela liberdade de morrer, mas pela capacidade de não abandonar. Como referido na obra de Paul Ricoeur, a ética começa precisamente onde a técnica falha mas o cuidado permanece. A filosofia não legitima a morte provocada, antes nos convida a perguntar se fizemos tudo o que poderíamos fazer para honrar a vida até ao fim. Em modo de conclusão, estas decisões são um espelho para a nossa ética coletiva, ética de mínimos ou cívica. A eutanásia não é apenas uma questão de direitos individuais. É, acima de tudo, um espelho da ética coletiva que estamos dispostos a sustentar. Que tipo de sistema queremos? Um em que o sofrimento é acompanhado ou um em que o sofrimento é descartável? O sofrimento não pode ser um fim mas um meio para esta aliança de cuidado. Se não garantirmos primeiro a dignidade do cuidado oferecer a morte não será progresso, será desistência: social, institucional e ética. E eu pergunto-me: será isto realmente progresso?
Pedro Nuno Santos: Saúde foi a área em que o primeiro-ministro “mais falhou”
O secretário-geral do PS garante que a saúde foi a área em que o primeiro-ministro “mais falhou”, considerando que ao fim de um ano há no Serviço Nacional de Saúde (SNS) “um ambiente de instabilidade e caos”.
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