Num avanço significativo para a compreensão dos mecanismos neurais que governam a navegação em insectos, uma equipa internacional de cientistas, com participação destacada da Fundação Champalimaud em Lisboa, revelou como a mosca-da-fruta (Drosophila melanogaster) consegue manter uma trajectória rectilínea durante movimentos rápidos. Publicado na revista Nature Neuroscience a 1 de maio de 2025, o estudo descreve uma rede neural compacta que processa informação visual de ambos os olhos para detectar e corrigir desvios imperceptíveis, garantindo precisão mesmo a altas velocidades.
A pesquisa centrou-se no fluxo óptico, o padrão de movimento visual gerado quando a mosca se desloca. Durante um percurso rectilíneo, as imagens captadas pelas retinas desfilam simetricamente, criando uma ilusão de espelho. Qualquer desvio mínimo, contudo, quebra essa simetria, gerando assimetrias binoculares. O desafio reside em distinguir essas alterações subtis, já que o movimento para a frente produz uma simetria translacional que pode mascarar pequenas irregularidades.
A equipa, liderada por Eugenia Chiappe, investigadora principal do Laboratório de Integração Sensorimotora da Fundação Champalimaud, identificou neurónios especializados que resolvem este problema através de um cálculo matemático subtil: em vez de somar estímulos visuais, subtraem a componente simétrica do fluxo óptico. Os neurónios DNp15, localizados a jusante das células HS (envolvidas na detecção de movimento horizontal), são menos sensíveis ao fluxo simétrico e focam-se exclusivamente em assimetrias.
Utilizando microscopia de dois fotões, os cientistas observaram que os DNp15 integram informações ipsilaterais (do mesmo lado) das células HS e contralaterais (do lado oposto) das células H2, outra classe sensível ao movimento. Contudo, a descoberta crucial foi o papel de 16 neurónios adicionais, incluindo células inibitórias biPS, que modulam activamente esta rede. Estas células suprimem o “ruído” simétrico, permitindo que os DNp15 amplifiquem sinais assimétricos críticos para a correcção da trajectória.
O estudo recorreu ainda a um mapa detalhado das conexões neurais do cérebro da mosca, construído através de microscopia electrónica e processamento automatizado por inteligência artificial. Este mapeamento revelou que os neurónios DNp15 projetam-se para áreas motoras do cordão nervoso ventral (VNC), responsáveis pelo controlo de halteres, asas, pernas e pescoço. Assim, assim que um desvio é detectado, sinais são transmitidos em milissegundos para ajustes posturais que reorientam o insecto.
A capacidade de processamento deste circuito é notável: mesmo em velocidades elevadas, onde o fluxo óptico é dominado por simetria, a rede identifica assimetrias residuais e converte-as em comandos motores precisos. Segundo os autores, este mecanismo baseia-se em competição lateral e inibição recorrente, comparando continuamente entradas binoculares para suprimir informação redundante e destacar discrepâncias relevantes.
A participação da Fundação Champalimaud foi pivotal não apenas na análise comportamental, mas também no desenvolvimento de modelos computacionais que simularam a interacção entre visão e movimento. “Este sistema é um exemplo elegante de como circuitos neurais compactos podem realizar cálculos complexos sem necessidade de estruturas cerebrais volumosas”, explicou Chiappe.
As implicações do estudo vão além da biologia de insectos. Compreender como redes neurais simplificadas resolvem problemas de navegação pode inspirar algoritmos de inteligência artificial para robótica autónoma ou sistemas de visão computacional. Além disso, abre portas para investigar disfunções sensorimotoras em modelos animais mais complexos.
O trabalho contou com colaboradores da Alemanha, Estados Unidos e Portugal, destacando-se a integração de técnicas multidisciplinares — desde neurofisiologia até análise de big data neural. Os resultados reforçam a posição da Drosophila melanogaster como organismo-modelo crucial para desvendar princípios universais da neurociência.
0 Comments