José Silva Henriques / Médico de Família Lista C – Ordem com Confiança Candidato à SRNOM Conselho Disciplinar

A Arte de Cuidar com Ciência e Emoção: O Médico de Família.

05/19/2025

Ao longo das últimas décadas, o mundo tem testemunhado uma transformação profunda na forma como os cuidados de saúde são organizados, prestados e avaliados. Envelhecimento populacional, doenças crónicas, multimorbilidade, determinantes sociais da saúde, avanços tecnológicos e mudanças nas expectativas dos cidadãos constituem apenas alguns dos vetores que desafiam os modelos de prestação de cuidados. Neste contexto, a Medicina Geral e Familiar (MGF) sobressai como uma especialidade essencial para dar resposta a estas complexas necessidades.

A MGF é uma especialidade médica que se destaca pelo seu papel central em qualquer sistema de saúde, seja no setor público, privado ou social, pois é a especialidade que assegura cuidados integrais, continuados, personalizados e centrados na pessoa. No século XXI, marcado por profundas mudanças demográficas, epidemiológicas, tecnológicas e sociais, a relevância da MGF é cada vez mais evidente. Este artigo, a propósito do Dia do Médico de Família, analisa os principais desafios e oportunidades que moldam a atuação deste especialista, destacando o seu papel como pilar dos sistemas de saúde resilientes, eficientes e equitativos.

Mais do que uma “porta de entrada” para o sistema de saúde, a MGF representa um modelo de prática médica baseado na proximidade, na longitudinalidade, na abordagem centrada na pessoa e na valorização da relação e comunicação médico-paciente. Com um objetivo abrangente que integra a promoção da saúde, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação, o médico de família atua como gestor de cuidados, educador em saúde, defensor do paciente e elo de ligação entre os diferentes níveis de cuidados de saúde.

Historicamente, a figura do médico de família está intimamente ligada à prática médica generalista, que remonta às origens da medicina ocidental. Contudo, a institucionalização da especialidade de MGF foi um fenómeno mais recente, motivado pela crescente complexidade dos sistemas de saúde e pela necessidade de garantir cuidados acessíveis, eficientes, equitativos e humanizados.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem reiterado, desde a Declaração de Alma-Ata (1978) até à Declaração de Astana (2018), a importância dos cuidados de saúde primários como base de sistemas de saúde robustos e acessíveis a toda a população. A MGF ocupa, assim, uma posição estratégica na operacionalização desses princípios, sendo reconhecida como uma especialidade médica autónoma, com competências científicas, clínicas, comunicacionais e organizacionais específicas.

A prática da MGF é orientada por uma abordagem holística do indivíduo, considerando não apenas a doença, mas o contexto biopsicossocial em que ela ocorre. O médico de família conhece a pessoa e a família a quem presta cuidados, a sua história de vida, o seu ambiente familiar e social. Este conhecimento permite decisões clínicas mais ajustadas, evitando intervenções desnecessárias e promovendo adesão às terapêuticas.

Ao acompanhar os seus pacientes ao longo da vida, o médico de família estabelece relações de confiança duradouras. Esta continuidade promove melhores resultados em saúde, maior satisfação dos utentes e menor utilização de serviços hospitalares. Estudos internacionais demonstram que sistemas baseados em cuidados primários robustos, com forte componente da MGF, são mais equitativos e eficientes.

O século XXI trouxe um aumento significativo de pessoas com múltiplas condições crónicas. A abordagem fragmentada e especializada destes doentes, centrada em patologias específicas, tem demonstrado limitações. O médico de família, com a sua visão integrada e orientada para objetivos partilhados com o seu paciente, está particularmente apto para coordenar cuidados e otimizar intervenções.

A proximidade com a comunidade permite ao médico de família desempenhar um papel fundamental na mitigação de determinantes sociais da saúde e na redução das desigualdades de acesso a cuidados de saúde.

A revolução digital na saúde impõe novos desafios e oportunidades. A telemedicina, a inteligência artificial, os registos eletrónicos e as plataformas de interoperabilidade exigem que o médico de família desenvolva competências adicionais e se adapte a novas formas de interação. A utilização criteriosa da tecnologia pode potenciar a qualidade dos cuidados, mas também acarreta riscos de desumanização.

A prática em MGF exige atualização permanente. O conhecimento médico evolui rapidamente, e as competências transversais (comunicação, gestão de equipas, literacia em saúde) tornaram-se indispensáveis. Os programas de formação são indispensáveis, com valorização da investigação em contexto de cuidados primários.

A complexidade dos cuidados exige uma abordagem colaborativa. O médico de família trabalha em articulação com enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais (como médicos especialistas da área hospitalar e da Saúde Pública), em modelos organizacionais que promovem equipas multidisciplinares integradas, no sentido de proporcionar melhores indicadores de saúde e maior satisfação dos profissionais, mas o que presentemente, com a organização do Serviço Nacional de Saúde em Unidades Locais de Saúde, não está a acontecer. Estudo recente (AVALIA-ULS: PERCEÇÕES DOS MÉDICOS DE FAMÍLIA SOBRE RECURSOS E FORMAÇÃO. Revista de Investigação & Inovação em Saúde. vol.7(3), 1-8. 2024), revela que os médicos de família têm “uma perceção globalmente negativa quanto à transição para o modelo de ULS”.

Num mundo cada vez mais informado e interligado, o papel do médico de família como educador e facilitador de decisões partilhadas ganha relevo. A capacitação dos cidadãos para gerirem ativamente a sua saúde é fundamental para a sustentabilidade dos sistemas.

A MGF tem uma missão ética e social: garantir que todos, independentemente da sua condição económica, localização geográfica ou background cultural, tenham acesso a cuidados de qualidade.

Apesar da sua importância, Portugal, concretamente no Serviço Nacional de Saúde, enfrenta um défice confrangedor de médicos de família. As condições de trabalho, a remuneração e incentivos pouco atrativos, são contributos para dificuldades no recrutamento e retenção. Outra situação é sobrecarga burocrática e administrativa que desvia o foco da prática clínica e fragiliza o vínculo com os utentes, tornando-se um forte fator desmotivador para a praxis da especialidade.

A Medicina Geral e Familiar é uma especialidade médica essencial para enfrentar os desafios do século XXI. A sua abordagem centrada na pessoa, a continuidade de cuidados, a capacidade de gerir a complexidade e de trabalhar em rede fazem do médico de família um pilar dos sistemas de saúde modernos. Para que a MGF possa cumprir plenamente o seu potencial, é necessário valorizá-la enquanto especialidade, investir na sua formação, garantir condições de trabalho adequadas. Apenas assim poderemos construir um futuro em que a saúde de todos seja verdadeiramente uma prioridade, mais equitativa e humana.

 

 

 

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