Portaria polémica exclui equipas multidisciplinares das ECCI e gera alarme no SNS

27 de Maio 2025

Portaria n.º 156/2025, publicada sem auscultação pública, elimina equipas multidisciplinares nas ECCI e gera forte contestação de Ordens e profissionais do SNS, exigindo revisão urgente

A publicação da Portaria n.º 156/2025, a 7 de abril, durante um período de governo de gestão e sem discussão pública ou auscultação das ordens profissionais, associações e sindicatos, com exceção das estruturas de enfermagem, está a gerar polémica no Serviço Nacional de Saúde (SNS). O novo diploma põe em causa os princípios de integração de cuidados e a valorização da dimensão social, ao eliminar o conceito de equipa multidisciplinar consagrado no Decreto-Lei n.º 101/2006, que previa a colaboração de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais nas Equipas de Cuidados Continuados Integrados (ECCI).

A polémica em torno desta portaria acentuou-se com a definição de incentivos financeiros exclusivos para enfermeiros, contrariando o modelo de remuneração baseada em valor e resultados que tem vindo a ser desenvolvido nas Unidades de Saúde Familiar e Centros de Responsabilidade Integrados. Esta alteração é vista por muitos profissionais como um retrocesso, pois centra a prática na profissão e não na pessoa, desrespeitando a evidência científica e a evolução internacional para equipas multidisciplinares, especialmente relevantes no cuidado a pessoas idosas e com patologia complexa.

No seguimento da publicação desta portaria, as Ordens dos Fisioterapeutas, Nutricionistas, Psicólogos e Assistentes Sociais enviaram, no dia 7 de maio, uma posição conjunta à Ministra da Saúde, manifestando a sua profunda preocupação face ao teor da nova legislação. As quatro Ordens alertam que a Portaria põe em causa os princípios de trabalho em equipa multidisciplinar consagrados na lei da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), excluindo e desvalorizando várias profissões essenciais e contrariando a melhor evidência científica disponível. Sublinhando que o modelo de incentivos agora aprovado promove desigualdade entre profissionais que obrigatoriamente trabalham em conjunto, as Ordens consideram que está em risco a coesão das equipas e a qualidade dos cuidados domiciliários prestados à população mais vulnerável. Por isso, exigem uma revisão urgente da Portaria, defendendo a inclusão de todas as áreas profissionais envolvidas nos cuidados e o respeito pelo modelo legal e clínico que há quase duas décadas sustenta a RNCCI.

A liderança deste processo tem sido associada a Abel Paiva, enfermeiro e responsável nacional pela RNCCI. Apesar da posição conjunta apresentada pelas Ordens Profissionais de Nutrição, Fisioterapia, Psicologia e Serviço Social, mais de 20 dias após o pedido de reunião, estas continuam sem resposta da tutela mais de 20 dias após o pedido de reunião. A posição da tutela é que os incentivos diferenciados para enfermeiros tem por objetivo fixar estes profissionais muito atraídos pelo regime de incentivos das USF-B, no entanto, a grande lacuna em termos de recursos humanos relativamente ao exposto no DL 1001/2006 é fundamentalmente de fisioterapeutas, assistentes sociais e nutricionistas. Existem centenas de ECCI sem qualquer representação destas profissões

No terreno, os efeitos da Portaria já se fazem sentir. A ULS de Matosinhos, uma das seis unidades-piloto e com 15 anos de experiência em equipas multidisciplinares, enfrenta a possibilidade de exclusão dos fisioterapeutas das ECCI, que afetam  mais de 80 horas de trabalho e respondem a cerca de 20 utentes semanalmente. Esta decisão obriga à não renovação de contratos temporários e retira aos cuidados de saúde primários a capacidade de resposta que tinham vindo a construir. Nutricionistas, assistentes sociais e médicos são aparentemente relegados para órgãos não clínicos (ECL), sem acesso a incentivos, enquanto as novas ECCI 2.0 ficam apenas com enfermeiros de reabilitação, numa medida considerada corporativa e sem precedentes.

O Ministério da Saúde não responde às preocupações, a Direção Executiva remete para as ULS a adaptação do modelo, e os interlocutores locais alegam seguir orientações superiores. A fisioterapia, única profissão auto-regulada sem serviço próprio nas novas ULS, vê os seus recursos desviados para os hospitais um pouco por todo o País. O debate sobre modelos de governação clínica foi substituído por uma lógica centrada nas profissões, gerando um clima de indignação e incerteza entre os profissionais de saúde.

Neste contexto, as declarações do Bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, ganham especial relevância. Em declarações exclusivas ao HealthNews, Carlos Cortes confirmou que a Ordem está a analisar detalhadamente a portaria, tendo remetido o assunto aos colégios e ao gabinete jurídico, com o objetivo de tomar uma posição clara e consistente sobre esta matéria. O Bastonário sublinha que “há aqui um princípio que foi desrespeitado, que é o princípio das equipas multidisciplinares. Foi completamente desrespeitado ao arrepio daquilo que é a intervenção na saúde e, nomeadamente, nos cuidados continuados integrados”. Para Carlos Cortes, o trabalho desenvolvido nos cuidados continuados “não é um trabalho monodisciplinar, é um trabalho multiprofissional onde estão médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes operacionais e muitos outros profissionais que têm de ser considerados”. Acrescenta ainda que a Ordem dos Médicos está a preparar um parecer interno e um projeto de alteração da portaria, defendendo que esta medida “só pode ter sido um erro, de tão descabida que é”, e que “obviamente terá de ser alterada”.

Carlos Cortes reforçou ainda que esta é uma matéria que preocupa profundamente a Ordem dos Médicos, sublinhando que “o princípio das equipas multidisciplinares foi completamente desrespeitado, em claro conflito com a evidência científica existente”. O Bastonário garantiu que a Ordem está a trabalhar ativamente para que a portaria seja alterada, defendendo a necessidade de uma intervenção multiprofissional nos cuidados continuados integrados, em linha com as melhores práticas internacionais e com as necessidades reais dos doentes.

A posição conjunta das Ordens dos Fisioterapeutas, Nutricionistas, Psicólogos e Assistentes Sociais, enviada à Ministra da Saúde, reflete a preocupação generalizada dos profissionais do setor. As Ordens alertam que a nova legislação compromete a coesão das equipas, a qualidade dos cuidados e a própria sustentabilidade do modelo da RNCCI, ao excluir profissionais essenciais e ao privilegiar uma abordagem centrada numa única profissão. O silêncio da tutela perante estas preocupações e a ausência de diálogo com os representantes das profissões envolvidas agravam o clima de incerteza e descontentamento, colocando em risco a resposta do SNS aos cidadãos mais vulneráveis.

Perante este cenário, as Ordens insistem na necessidade de revisão da Portaria n.º 156/2025, exigindo o respeito pelo modelo multidisciplinar que tem sustentado os cuidados continuados integrados em Portugal, e apelam à Ministra da Saúde para que promova um verdadeiro diálogo com todos os intervenientes, salvaguardando a qualidade e a equidade dos cuidados prestados à população. O futuro da RNCCI, alertam, depende da valorização de todas as profissões e da manutenção do trabalho em equipa, em consonância com a evidência científica e as melhores práticas internacionais.

O Healthnews tentou obter uma reação do Ministério da Saúde, que até ao fecho desta notícia, não nos foi enviada.

HN/MM

 

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