A doença que os une

10 de Fevereiro 2022

Joaquim e Marco têm uma doença em comum, que os fez amigos, em resultado de uma experiência de partilha sobre o impacto pessoal, familiar e social de uma patologia crónica em quem dela sofre.

Joaquim Alves, enfermeiro de 64 anos, chega primeiro ao Parque Urbano de Miraflores. Dali a minutos aparece Marco Pedrosa, engenheiro civil de 34 anos. Até agora, em parte por causa da pandemia, têm falado só ao telefone. A pedido da Lusa e a pretexto do Dia Mundial do Doente, que se assinala na sexta-feira, vão finalmente conhecer-se pessoalmente, apesar de já saberem muito um do outro. Tanto, e tão íntimo, que já se dizem amigos.

Os 30 anos de diferença faziam reduzida a probabilidade de se conhecerem um dia, mas a doença de Crohn veio baralhar essas contas. Joaquim é mentor e Marco mentorado de um projeto piloto que a Associação Portuguesa da Doença Inflamatória do Intestino (APDI) estreou há um ano, com o objetivo de pôr “pessoas que vivem há mais anos com a doença a ajudar pessoas recém-diagnosticadas com a mesma patologia”, explica Ana Sampaio.

A presidente da APDI frisa que não se trata de apoio psicológico nem conselhos clínicos sobre tratamentos ou nutrição – para isso a associação disponibiliza outros serviços.

“Trata-se mais de uma vivência social. Por exemplo, algumas pessoas têm dúvidas se hão de dizer ou não no trabalho que têm a doença, como é que hão de interagir com os amigos. ‘Posso ou não ir a um restaurante? E depois se no restaurante não me sinto confortável com a comida que me é apresentada?’”, exemplifica. É para estas dúvidas que são úteis as “dicas” de “pessoas que vivem há mais anos com a doença e já sabem como hão de fazer”.

Na sua página na internet, a APDI destaca que o diagnóstico de uma doença crónica implica um processo de reorganização do quotidiano e que os estudos demonstram que o bem-estar emocional dos doentes é fundamental nessa adaptação. “Tentamos também que as pessoas aprendam a gerir a sua própria doença. É muito importante formar e informar, para que realmente consigam gerir e ter qualidade de vida”, realça Ana Sampaio.

Criada há 27 anos, numa altura em que “havia muita falta de informação sobre o que era a doença de Crohn, o que era a colite ulcerosa”, a APDI tem como lema “ser feliz com doença inflamatória do intestino”.

“Sabemos que temos a doença, que é uma doença crónica, mas queremos que as pessoas vivam com qualidade de vida e que sejam felizes e sonhem igual a qualquer outra pessoa da sua idade em fazer o que lhes apetecer”, destaca Ana Sampaio.

O abraço de Joaquim e Marco é apertado, acompanhado de palmadinhas nas costas. Sentados um banco de jardim, a conversa gira em torno da alimentação, tema omnipresente para os 24 mil doentes com doença inflamatória do intestino registados em Portugal.

“Estás com bom ar”, elogia Joaquim. “O Joaquim também tem muito bom aspeto”, devolve Marco, confirmando que tem estado “bastante bem nas últimas seis semanas”.

Marco, que sempre teve algum cuidado com a alimentação, eliminou açúcares, alimentos processados, álcool, “praticamente tudo” o que achava que lhe poderia fazer mal. Quando deu por ela, “estava a comer salmão, arroz e bananas todos os dias”, recorda.

Agora, vai “pondo umas frutas e variando a dieta”. Porém, confessa, ainda não arrisca demasiado, até porque “basta pôr qualquer gordura e é logo um desarranjo”. Ainda recentemente, não resistiu à picanha, um dos seus pratos prediletos, e isso resultou na “última minicrise”.

Joaquim concorda que a dieta de Marco é “muito restritiva” e dá graças por poder consumir o azeite das “oliveiras lá da terra”. No seu caso, é “muito sensível” aos condimentos e não tolera tomate cru, só refogado. Há dias foi buscar um coelho grelhado e ofereceram-lhe “um molho” – não teve uma crise, mas andou com “desconforto” uns dias.

Uma doença é “um ponto em comum” e Marco, atordoado com a notícia, seguiu a sugestão de uma médica e foi conhecer a APDI, aderindo ao programa de mentoria, atualmente com 12 mentores e nove mentorados.

“[O Joaquim] tem-me ajudado todos os dias. Nem conhecia a doença de Crohn, não tenho ninguém próximo, sejam amigos ou familiares, que tenha doença de Crohn. Caiu-me, na altura, quase como uma bomba. Tive um mau bocado, no início”, partilha Marco.

Movido pela “oportunidade de ajudar outra pessoa”, Joaquim tem outra mentorada, que “passou um calvário” até conseguir um diagnóstico e “isto é referido por muitas pessoas que têm a doença de Crohn”.

Enfermeiro que é, não deixa de apontar a “péssima” acessibilidade do Serviço Nacional de Saúde, que “globalmente é bom”, e as “assimetrias” nos cuidados. “Sou um grande defensor do Serviço Nacional de Saúde, mas há muito trabalho ainda a fazer e muitas limas a serem limadas, para haver tudo isso, a participação dos cidadãos, toda a gente ter os cuidados a tempo e horas… Há um certo número de coisas que têm de ser melhoradas”, advoga.

“Notei que a disponibilidade dos profissionais [de saúde] ficou muito afetada pela covid, porque foi tudo centrado na covid e os outros doentes, nomeadamente os doentes crónicos, ficaram um bocadinho sem atenção”, realça.

Mentor e mentorado já tiveram várias formas de interação, começaram no WhatsApp, depois passaram para o telefone. Inicialmente, as mensagens eram muito centradas na doença, nos tratamentos, nas complicações, mas a conversa foi-se alargando à família, ao trabalho, às diversas esferas da vida social.

Atualmente, Marco leva “uma vida completamente normal”, que inclui “desporto e um trabalho exigente” e já são “mais os altos do que os baixos” que partilha com o Joaquim.

“Hoje em dia, já tenho o Joaquim como um amigo. A conversa foi fluindo e fomos falando de tudo, não só da doença, quando é necessário, mas doutras coisas, como fazem os amigos”, normaliza Marco.

“Um dia destes vamos jantar”, despedem-se.

LUSA/HN

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