Céu Gonçalves: Jurista e Formadora; Especialização em Direito Laboral Público e Privado; Pós-Graduada em Bioética

O whistleblowing na relação laboral pública e privada. Da retaliação laboral ao suicido profissional.

05/10/2024

  (L n.º 93/2021, de 20/12)

A legislação nacional tem tido a preocupação de regular alguns aspetos particularmente relevantes relacionados com o whistleblowing e a consequente proteção do whistleblower.

Há um conjunto de normativos que possibilitam ao trabalhador denunciar factos sempre que esteja em presença de um comportamento do empregador suscetível de ser um ilícito penal, um ilícito civil, um comportamento sujeito a contraordenação ou simplesmente um comportamento censurável na perspetiva moral e ético.

Neste contexto pode fazer-se referência ao art. 4.º da L n.º 18/2008, de 21/04 com a redação da L n.º 30/2015, de 22/04, onde se estipulava que, os trabalhadores da Administração Pública e de empresas do sector empresarial do Estado, assim como os trabalhadores do sector privado, que denunciem o cometimento de infrações de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas não podem, sob qualquer forma, ser prejudicados, designadamente, ser objeto de transferência não voluntária ou de despedimento. Este mesmo diploma adiantou uma presunção, ainda que ilidível, no sentido de se considerar abusiva toda a sanção disciplinar aplicada ao whistleblower, sempre que tenha lugar até um ano após a respetiva denúncia.

Este artigo atribui ainda ao whistleblower o direito ao anonimato até à dedução de acusação; a ser transferido a seu pedido, sem faculdade de recusa, após dedução de acusação e ainda, o direito de ser abrangido pelas normas de proteção de testemunhas em processo penal, alterada pelas Leis n.os 29/2008, de 4 de julho, e 42/2010, de 3 de setembro, com as devidas adaptações.

Em 2017, o Código do Trabalho sofreu alterações com a publicação da L n.º 73/2017, de 16/08, onde se observa o reforço do quadro legislativo na prevenção da prática de assédio laboral.

Estes diplomas devem ser articulados com a L n. 93/2021, de 20/12, que transpondo a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, estabelece o regime geral de proteção de denunciantes de infrações e que entrou em vigor a 18/06/2022.

Do acervo normativo dedicado a proteção do whistleblower pode-se identificar as suas garantias e direitos, como já foi oportuno salientar com a referência ao artigo 4.º da L n.º L n.º 18/2008, de 21/04, do qual se pode fazer um cometário negativo quanto ao prazo de um ano para fazer funcionar a presunção de sanção abusiva, por ser demasiado curto face aos interesses que a norma visa proteger.

Apesar de ser notório que o incentivo do whistleblowing reporta as áreas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo – L n.º 83/2017, de 18/08 com redação da L n.º 58/2020, de 31/08, o legislador laboral não foi indiferente a este fenómeno e já deu alguns passos nesta matéria, ainda que com caráter genérico exigindo uma regulamentação que torne a proteção do denunciante mais efetiva, designadamente, a redução de conceitos indeterminados, sob pena deste regime não se traduzir numa proteção efetiva. Um exemplo flagrante da falta de uniformização de tratamento destas questões foi a exclusão do regime atualmente em vigor dos trabalhadores em empresas até 50 trabalhadores. O mesmo se diga das autarquias locais que tenham até 10 mil habitantes.

Uma outra limitação a considerar no whistleblowing é a prova.

Os trabalhadores e empregadores estão sujeitos a direitos e deveres. O denunciante enquanto trabalhador está sujeito aos deveres gerais e funcionais previstos na lei e aos princípios orientadores do direito laboral e estes podem traduzir-se num obstáculo à proteção do denunciante, ou seja, em termos práticos, o ato de denúncia pode consubstanciar a violação dos deveres gerais previstos na lei nomeadamente, o dever de lealdade, o dever de sigilo, de diligência e urbanidade por parte do trabalhador, e por conseguinte, o trabalhador pode vir a ser acusado de comportamento difamatório e/ou injurioso em relação à entidade empregadora implicando responsabilidade disciplinar e/ou criminal.

Assim, a salvaguarda dos whistleblowers passa pela prévia recolha de prova dos factos que pretende denunciar. Quer isto dizer, que o sucesso da denúncia depende da prova da veracidade dos factos. Não se verificando a veracidade dos factos ou não sendo os dados relatados dados como provados, o trabalhador denunciante pode vir a ser acusado da violação de alguns deveres que advém do vínculo laboral e por isso, sujeitos a processo disciplinar ou / e criminal.

A exigência da prova dos factos a cargo do denunciante em algumas situações pode ser visto com um obstáculo ao regime da denúncia e consequentemente um reforço da cultura de silêncio institucional.

A jurisprudência é relevadora de que, a proteção do denunciante é mais efetiva após a cessação do contrato de trabalho, quando instaurada a ação de impugnação de despedimento pela sua ilicitude, (se for o caso) e por isso, as medidas de proteção do denunciante podem não produz efeitos práticos desejados e imediatos para o denunciante.

Retaliações laborais em sede do  whistleblowing

O empregador perante uma denúncia válida pode ter uma de entre duas atitudes possíveis:

– Decide instaurar um processo de inquérito que por sua vez pode ser arquivado (não há matéria suficiente) ou desenvolver-se no sentido de se apurar a responsabilidade civil, disciplinar e criminal;

– Arquivar por falta de interesse em agir.

Independentemente da opção que tiver escolhido, o empregador pode iniciar um conjunto de comportamentos com vista a retaliação do whistleblower, isto é, iniciar um conjunto de ações capazes de provocar dano como resposta a outro dano causado pelo whistleblower.

A retaliação pode ser concretizada nas mais variadíssimas formas sendo certo que a mais grave é o despedimento. O leque de comportamentos por parte do empregador é enorme e está diretamente relacionada com a intensidade de resposta por este pretendida.

A intensidade da resposta está por sua vez dependente de várias circunstâncias nomeadamente, a posição do whistleblower na hierarquia da organização (em regra, quanto maior for a categoria do denunciante maior será a intensidade da retaliação), o tipo de canal utilizado para a denúncia (em regra, o canal externo e a denúncia pública pressupõem uma retaliação mais intensa e tendencialmente tardia face à data da denúncia) e o grau de veracidade da denúncia (quanto maior for a possibilidade da veracidade dos factos devidamente comprovados maior a intimidação dos responsáveis e superiores hierárquicos o que pode significar menor intensidade da resposta.

Em caso de despedimento como forma de retaliação, este segue, em regra, um qualquer motivo suscetível de ter uma aparência legal para justificar a “justa causa” ocultando a verdadeira motivação da cessação do vínculo laboral. Em regra, o trabalhador é objeto de processo disciplinar por violação de um dever geral ou funcional e estas situações só são detetadas com a reposição da legalidade em sede de impugnação do despedimento, ou seja, a legalidade só é reposta com o crivo judicial.

Uma outra forma de retaliação por parte do empregador é a manipulação das avaliações de desempenho do trabalhador com a consequente estagnação na carreira.

Salienta-se ainda que, o empregador pode iniciar um conjunto de comportamentos reiterados e prolongados no tempo a consubstanciar assédio moral com as respetivas consequências gravíssimas para o  whistleblower.

Em suma, todos os comportamentos tidos pelo empregador visam infringir dano à carreira e em última instância fazer cessação do contrato de trabalho do whistleblower e intimidar todos os restantes trabalhadores da empresa, perpetuando-se impunemente as condutas dos verdadeiros infratores.

Garantias, direitos e deveres do empregador e trabalhador no  whistleblowing. O direito a liberdade de expressão

A observância das garantias, direitos e deveres pelas partes na relação laboral é o garante da licitude do whistleblowing, desde logo, porque só um comportamento lícito, não culposo e legal tem tutela do Direito.

Falar de garantias, direitos e deveres do empregador e trabalhador implica que se identifique os três poderes da entidade empregadora consagrados na lei – o poder de direção, o disciplinar e o regulamentar, sendo que este último é de grande importância para o whistleblowing. Qualquer destes três poderes estão limitados pelas garantias, direitos e deveres dos trabalhadores traduzindo-se num travão ao comportamento abusivo quer de trabalhadores quer de empregadores.

O poder regulamentar da entidade empregadora possibilita a regulação de condutas anti- whistleblowing com os respetivos procedimentos internos de denúncias.

Entre os vários direitos dos trabalhadores existe um com particular interesse no fenómeno do whistleblowing, – o direito de expressão.

O direito de expressão no processo de whistleblowing pode traduzir-se em alguma conflitualidade assente essencialmente na amplitude desse direito.

Veja-se algumas questões:

– O whistleblowing legitima a liberdade de expressão em absoluto (dentro e fora do lugar e tempo de trabalho)?

– O modo e como a denúncia é apresentada tem consequências para a manutenção da relação laboral (o tipo de canal utilizado pelo denunciante, a forma como a denúncia é efetuada faz a diferença no tratamento da denúncia com consequências nefastas para o denunciante?

– O âmbito do whistleblowing inclui ou não a denúncia pública?

As respostas as questões apresentadas obriga a esclarecer alguns aspetos de forma sumaríssima, nomeadamente, identificar os tipos de canais disponíveis para o  whistleblowing.

Existem três canais de comunicação: internos, externos e as denúncias públicas.

A denúncia interna é aquela em que a comunicação escrita ou verbal sobre comportamentos que violam normas legais é efetuada no interior de uma entidade jurídica do setor público ou privado, ou seja, o processo segue apenas nos departamentos da própria organização/instituição é o caso por exemplo dos organismos de supervisão e fiscalização e dos departamentos de auditoria.

Já, a denúncia externa é aquela que segue através de entidades judiciárias ou administrativas com competência para a investigação, nomeadamente, o MP, a ACT e os Órgãos de Polícia Criminal (OPC) entre outros.

Note-se que, a denúncia externa não se confunde com a denúncia pública. Esta última reporta a denúncias efetuadas para órgãos de comunicação social ou redes sociais.

Quanto ao modo e como a denúncia é apresentada pode dizer-se que o denunciante tem o poder de optar, desde que, preenchidos os requisitos previstos na lei. Quer isto dizer que os canais não estão hierarquicamente relacionados impondo-se por exemplo a exclusão do canal externo pelo não uso do canal interno em primeira linha. O denunciante pode recorrer a um dos canais ou aos dois em simultâneo desde que verificados os requisitos estabelecidos na lei.

Parece que, a opção do denunciante passará certamente pela motivação e pelas circunstâncias que envolvem a resolução da situação denunciada.

No que respeita a denúncia pública é importante esclarecer que a mesma não está subordinada a denúncia interna ou externa mas está sob condição de existirem «motivos razoáveis» que façam presumir a existência de “perigo iminente” ou “manifesto” para o “interesse público” ou que possam existir “danos irreparáveis”.

A denúncia pública sem que exista motivos para presumir a existência de perigo iminente para o interesse público não encontra proteção na lei, ou seja, o denunciante fica por sua conta e risco.

Já a denúncia anónima como sendo aquela em que o trabalhador denunciante não se identifica, ou seja, com identidade desconhecida, é muito frequente, designadamente, nas organizações/instituições pouco abertas e com grande tendência para a retaliação. Nestes casos, a denúncia anonima tem a vantagem de evitar a retaliação e reduz o sentimento de medo por parte do denunciante mas a desvantagem deste ficar impossibilitado de acompanhar e intervir no processo.

Se por acaso, o denunciante for identificado fica este abrangido pelo regime de proteção de denunciantes.

Aqui chegados, sempre se diria que o whistleblowing não legítima a liberdade de expressão em absoluto, o que deve levar a alguma cautela por parte do denunciante.

Ainda assim, começa-se a assistir uma certa mudança no pacto de silêncio na cultura empresarial.

O sucesso do whistleblowing implica que o dever de denunciar deva prevalecer sobre qualquer outro dever ao abrigo do interesse público observando-se obrigatoriamente o princípio da confidencialidade absoluta e deve o processo ser orientado pelas garantias de segurança jurídica.

Enquanto isso, ao whistleblower resta-lhe a coragem para seguir um caminho solitário rumo ao suicido profissional.

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