Todos os artigos em: SNS - Sim é possivel

Os problemas de fundo do SNS e forma de os solucionar

04/06/2024
Luis Filipe Pereira
Economista
Ministro da Saúde nos XV e XVI Governos Constitucionais

O SNS constituiu, sem dúvida, uma das principais realizações do regime democrático, saído da Revolução do 25 de Abril, sendo aquela que, no campo social, maior impacto e reconhecimento tem por parte da população.

O SNS garantiu o acesso aos cuidados de saúde, a todos os portugueses, de forma geral, universal e gratuita, transferindo para o Estado o risco (e o receio milenar) da impossibilidade a nível individual, de fazer face, em termos económicos, a situações de doença.

O SNS foi, assim, um avanço social fundamental e um instrumento decisivo de assistência obrigatória e de proteção social em caso de doença.

Hoje, há que reconhecer, no entanto, que o SNS vive uma situação de crise, amplamente conhecida e discutida na opinião pública, que se traduz por um grave problema de acesso da população aos cuidados de saúde, bem documentada no fecho e mau funcionamento das urgências hospitalares, na deficiente resposta dos cuidados primários, na perene existência de listas de espera para cirurgias e consultas, na inexistência de médicos de família para mais de 1,5 milhões de pessoas etc.

Esta situação que o país defronta, na área da saúde, não se deve à falta de qualidade dos seus profissionais (existirão, é evidente, erros cometidos por estes profissionais como em qualquer outra área ou profissão) nem à escassa atribuição de recursos financeiros para o funcionamento do SNS: de 2015 a 2023 os orçamentos do SNS aumentaram de cerca de 9,0 mil milhões (mM) para cerca de 14,0 mM, um acréscimo de cerca de 55% com piores resultados para a população.

Os problemas críticos que estão na origem desta situação têm a ver, na minha opinião, com dois fatores fundamentais: i)a forma como ao longo do tempo tem sido feita a gestão do SNS e ii) a incapacidade política de definir uma estratégia para o futuro do SNS que reconheça, sem dogmas e sem receio de custos políticos, a necessidade inevitável de introduzir mudanças estruturais.

A má gestão dos Recursos Humanos (RH) tem sido, a meu ver, uma das principais, senão a principal, causa da enorme ineficiência e da má resposta do SNS às necessidades da população. Um exemplo evidente tem a ver com a falta de planeamento e a incapacidade de antecipar as necessidades (previsíveis) de profissionais, em especial, médicos, o que conjugado com a deficiente resposta dos cuidados primários, está na origem do fecho e do mau funcionamento das urgências hospitalares, por falta destes profissionais no SNS.

Na realidade não há falta de médicos em Portugal: o país forma mais médicos do que a média dos países da OCDE e é o 8º país com mais médicos por 1.000/habitantes, a nível mundial. Trata-se, com efeito, de uma falha de gestão em atrair e reter estes profissionais no SNS, dando-lhes condições que evitem a sua emigração ou ida para o sector privado.

A falta de gestão também se revela na forma como os RH são geridos: não existe na gestão pública dos RH, práticas e um enquadramento favorável a uma gestão por meritocracia, nem uma avaliação efetiva de desempenho individual, ligada a incentivos e penalizações.

Como em qualquer organização humana, a incapacidade de distinguir (e recompensar) as pessoas que se interessam das que não cumprem, leva inevitavelmente, sobretudo nas funções menos diferenciadas, ao nivelamento “por baixo” do desempenho global da organização.

O problema é de gestão e não da qualidade dos recursos humanos na função pública: a qualidade média   é a mesma no sector privado ou no público, a diferença é que estes recursos são geridos no Estado de maneira diferente e de forma deficiente.

No modelo em que foi criado (modelo “beveridigiano) no qual o Estado  assume todos os papéis : de “Produtor” dos cuidados de saúde; de Financiador; de Empregador  de todos os RH e de Gestor de todas as unidades, o SNS nunca resolveu alguns dos problemas de acesso identificados como, por ex., as listas de espera para cirurgias e consultas e a atribuição de médicos de família a todos os portugueses.

Há, assim, a par de mudanças fundamentais na gestão dos RH, a necessidade de uma reforma estrutural do SNS e de uma nova estratégia, já que não se afigura avisado esperar resultados diferentes com o mesmo modelo e tipo de atuação.

Esta nova estratégia passa pela evolução do conceito de SNS-Serviço Nacional de Saúde para o de SS-Sistema de Saúde no qual coexistam as três iniciativas: pública, privada e social. O Estado continuará a garantir a todos os portugueses o acesso aos cuidados de saúde, de forma geral, universal e (tendencialmente) gratuita, como até aqui, mas a prestação de cuidados de saúde poderá ser feita pelo Estado, como hoje, ou pela ação das outras iniciativas – privada ou social – para o efeito contratualizadas.

Esta articulação entre todas as iniciativas, pondo à disposição da população todos os recursos existentes no país, na área da saúde, e a contratualização pelo Estado às outras iniciativas da prestação de cuidados de saúde permite i) melhores resultados para a população e menores custos porque o Estado paga apenas por objetivos atingidos (uma prova evidente encontra-se nos Hospitais em PPP que deram excelentes resultados); ii) um aumento da acessibilidade da população aos cuidados de saúde, combatendo os problemas de acesso hoje existentes; iii) a comparação “benchmarking” do desempenho de todas as iniciativas, o que se traduz pela existência de um estímulo permanente para a eficiência (estímulo “externo” vindo de fora das unidades prestadoras a que se deverá adicionar, um estímulo permanente “interno” vindo da introdução de mudanças fundamentais na gestão dos RH, como atrás defendi).

É tempo de assumir que a questão fundamental é a de garantir a todos os portugueses cuidados de saúde conforme se encontra expresso na Constituição e não a de saber se as entidades que os prestam são públicas, privadas ou sociais.

O SNS foi concebido como um meio para atingir uma finalidade fundamental: a de dar acesso a todos os portugueses aos cuidados de saúde. Trata-se de um meio que não podemos “sacralizar “ e de negar a sua evolução se daí resultarem melhores resultados para o país e para a população. ”Aliás, o modelo “beveridigiano” adotado em Portugal não é único. Outros países, como por ex., a Suíça (considerado como aquele que tem o melhor sistema de saúde na Europa), a Alemanha, a França e os Países Baixos (todos também com melhores sistemas de saúde que o português) têm outros modelos com uma grande participação da iniciativa privada.

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

Novos diagnósticos de VIH aumentam quase 12% na UE/EEE em 2023

 A taxa de novos diagnósticos de pessoas infetadas pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) cresceu 11,8% de 2022 para 2023 na União Europeia/Espaço Económico Europeu, que inclui a Noruega, a Islândia e o Liechtenstein, indica um relatório divulgado hoje.

Idade da reforma sobe para 66 anos e nove meses em 2026

A idade da reforma deverá subir para os 66 anos e nove meses em 2026, um aumento de dois meses face ao valor que será praticado em 2025, segundo os cálculos com base nos dados provisórios divulgados hoje pelo INE.

Revolução no Diagnóstico e Tratamento da Apneia do Sono em Portugal

A Dra. Paula Gonçalves Pinto, da Unidade Local de Saúde de Santa Maria, concorreu à 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde, uma iniciativa da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar (APDH), com um projeto inovador para o diagnóstico e tratamento da Síndrome de Apneia Hipopneia do Sono (SAHS). O projeto “Innobics-SAHS” visa revolucionar a abordagem atual, reduzindo significativamente as listas de espera e melhorando a eficiência do processo através da integração de cuidados de saúde primários e hospitalares, suportada por uma plataforma digital. Esta iniciativa promete não só melhorar a qualidade de vida dos doentes, mas também otimizar os recursos do sistema de saúde

Projeto IDE: Inclusão e Capacitação na Gestão da Diabetes Tipo 1 nas Escolas

A Dra. Ilka Rosa, Médica da Unidade de Saúde Pública do Baixo Vouga, apresentou o “Projeto IDE – Projeto de Inclusão da Diabetes tipo 1 na Escola” na 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde. Esta iniciativa visa melhorar a integração e o acompanhamento de crianças e jovens com diabetes tipo 1 no ambiente escolar, através de formação e articulação entre profissionais de saúde, comunidade educativa e famílias

Cerimónia de Abertura da 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde: Inovação e Excelência no Setor da Saúde Português

A Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar (APDH) realizou a cerimónia de abertura da 17ª edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde, destacando a importância da inovação e excelência no setor da saúde em Portugal. O evento contou com a participação de representantes de várias entidades de saúde nacionais e regionais, reafirmando o compromisso com a melhoria contínua dos cuidados de saúde no país

Crescer em contacto com animais reduz o risco de alergias

As crianças que crescem com animais de estimação ou em ambientes de criação de animais têm menos probabilidade de desenvolver alergias, devido ao contacto precoce com bactérias anaeróbias comuns nas mucosas do corpo humano.

Percursos Assistenciais Integrados: Uma Revolução na Saúde do Litoral Alentejano

A Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano implementou um inovador projeto de percursos assistenciais integrados, visando melhorar o acompanhamento de doentes crónicos. Com recurso a tecnologia digital e equipas dedicadas, o projeto já demonstrou resultados significativos na redução de episódios de urgência e na melhoria da qualidade de vida dos utentes

Projeto Luzia: Revolucionando o Acesso à Oftalmologia nos Cuidados de Saúde Primários

Projeto Vencedor
O Dr. Sérgio Azevedo, Diretor do Serviço de Oftalmologia da ULS do Alto Minho, apresentou o projeto “Luzia” na 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde. Esta iniciativa inovadora visa melhorar o acesso aos cuidados oftalmológicos, levando consultas especializadas aos centros de saúde e reduzindo significativamente as deslocações dos pacientes aos hospitais.

Inovação na Saúde: Centro de Controlo de Infeções na Região Norte Reduz Taxa de MRSA em 35%

O Eng. Lucas Ribeiro, Consultor/Gestor de Projetos na Administração Regional de Saúde do Norte, apresentou na 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde os resultados do projeto “Centro de Controlo de Infeção Associado a Cuidados de Saúde na Região Norte”. A iniciativa, que durou 24 meses, conseguiu reduzir significativamente a taxa de MRSA e melhorar a vigilância epidemiológica na região

Gestão Sustentável de Resíduos Hospitalares: A Revolução Verde no Bloco Operatório

A enfermeira Daniela Simão, do Hospital de Pulido Valente, da ULS de Santa Maria, em Lisboa, desenvolveu um projeto inovador de gestão de resíduos hospitalares no bloco operatório, visando reduzir o impacto ambiental e económico. A iniciativa, que já demonstra resultados significativos, foi apresentada na 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde, promovida pela Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar

Share This