O SNS constituiu, sem dúvida, uma das principais realizações do regime democrático, saído da Revolução do 25 de Abril, sendo aquela que, no campo social, maior impacto e reconhecimento tem por parte da população.
O SNS garantiu o acesso aos cuidados de saúde, a todos os portugueses, de forma geral, universal e gratuita, transferindo para o Estado o risco (e o receio milenar) da impossibilidade a nível individual, de fazer face, em termos económicos, a situações de doença.
O SNS foi, assim, um avanço social fundamental e um instrumento decisivo de assistência obrigatória e de proteção social em caso de doença.
Hoje, há que reconhecer, no entanto, que o SNS vive uma situação de crise, amplamente conhecida e discutida na opinião pública, que se traduz por um grave problema de acesso da população aos cuidados de saúde, bem documentada no fecho e mau funcionamento das urgências hospitalares, na deficiente resposta dos cuidados primários, na perene existência de listas de espera para cirurgias e consultas, na inexistência de médicos de família para mais de 1,5 milhões de pessoas etc.
Esta situação que o país defronta, na área da saúde, não se deve à falta de qualidade dos seus profissionais (existirão, é evidente, erros cometidos por estes profissionais como em qualquer outra área ou profissão) nem à escassa atribuição de recursos financeiros para o funcionamento do SNS: de 2015 a 2023 os orçamentos do SNS aumentaram de cerca de 9,0 mil milhões (mM) para cerca de 14,0 mM, um acréscimo de cerca de 55% com piores resultados para a população.
Os problemas críticos que estão na origem desta situação têm a ver, na minha opinião, com dois fatores fundamentais: i)a forma como ao longo do tempo tem sido feita a gestão do SNS e ii) a incapacidade política de definir uma estratégia para o futuro do SNS que reconheça, sem dogmas e sem receio de custos políticos, a necessidade inevitável de introduzir mudanças estruturais.
A má gestão dos Recursos Humanos (RH) tem sido, a meu ver, uma das principais, senão a principal, causa da enorme ineficiência e da má resposta do SNS às necessidades da população. Um exemplo evidente tem a ver com a falta de planeamento e a incapacidade de antecipar as necessidades (previsíveis) de profissionais, em especial, médicos, o que conjugado com a deficiente resposta dos cuidados primários, está na origem do fecho e do mau funcionamento das urgências hospitalares, por falta destes profissionais no SNS.
Na realidade não há falta de médicos em Portugal: o país forma mais médicos do que a média dos países da OCDE e é o 8º país com mais médicos por 1.000/habitantes, a nível mundial. Trata-se, com efeito, de uma falha de gestão em atrair e reter estes profissionais no SNS, dando-lhes condições que evitem a sua emigração ou ida para o sector privado.
A falta de gestão também se revela na forma como os RH são geridos: não existe na gestão pública dos RH, práticas e um enquadramento favorável a uma gestão por meritocracia, nem uma avaliação efetiva de desempenho individual, ligada a incentivos e penalizações.
Como em qualquer organização humana, a incapacidade de distinguir (e recompensar) as pessoas que se interessam das que não cumprem, leva inevitavelmente, sobretudo nas funções menos diferenciadas, ao nivelamento “por baixo” do desempenho global da organização.
O problema é de gestão e não da qualidade dos recursos humanos na função pública: a qualidade média é a mesma no sector privado ou no público, a diferença é que estes recursos são geridos no Estado de maneira diferente e de forma deficiente.
No modelo em que foi criado (modelo “beveridigiano) no qual o Estado assume todos os papéis : de “Produtor” dos cuidados de saúde; de Financiador; de Empregador de todos os RH e de Gestor de todas as unidades, o SNS nunca resolveu alguns dos problemas de acesso identificados como, por ex., as listas de espera para cirurgias e consultas e a atribuição de médicos de família a todos os portugueses.
Há, assim, a par de mudanças fundamentais na gestão dos RH, a necessidade de uma reforma estrutural do SNS e de uma nova estratégia, já que não se afigura avisado esperar resultados diferentes com o mesmo modelo e tipo de atuação.
Esta nova estratégia passa pela evolução do conceito de SNS-Serviço Nacional de Saúde para o de SS-Sistema de Saúde no qual coexistam as três iniciativas: pública, privada e social. O Estado continuará a garantir a todos os portugueses o acesso aos cuidados de saúde, de forma geral, universal e (tendencialmente) gratuita, como até aqui, mas a prestação de cuidados de saúde poderá ser feita pelo Estado, como hoje, ou pela ação das outras iniciativas – privada ou social – para o efeito contratualizadas.
Esta articulação entre todas as iniciativas, pondo à disposição da população todos os recursos existentes no país, na área da saúde, e a contratualização pelo Estado às outras iniciativas da prestação de cuidados de saúde permite i) melhores resultados para a população e menores custos porque o Estado paga apenas por objetivos atingidos (uma prova evidente encontra-se nos Hospitais em PPP que deram excelentes resultados); ii) um aumento da acessibilidade da população aos cuidados de saúde, combatendo os problemas de acesso hoje existentes; iii) a comparação “benchmarking” do desempenho de todas as iniciativas, o que se traduz pela existência de um estímulo permanente para a eficiência (estímulo “externo” vindo de fora das unidades prestadoras a que se deverá adicionar, um estímulo permanente “interno” vindo da introdução de mudanças fundamentais na gestão dos RH, como atrás defendi).
É tempo de assumir que a questão fundamental é a de garantir a todos os portugueses cuidados de saúde conforme se encontra expresso na Constituição e não a de saber se as entidades que os prestam são públicas, privadas ou sociais.
O SNS foi concebido como um meio para atingir uma finalidade fundamental: a de dar acesso a todos os portugueses aos cuidados de saúde. Trata-se de um meio que não podemos “sacralizar “ e de negar a sua evolução se daí resultarem melhores resultados para o país e para a população. ”Aliás, o modelo “beveridigiano” adotado em Portugal não é único. Outros países, como por ex., a Suíça (considerado como aquele que tem o melhor sistema de saúde na Europa), a Alemanha, a França e os Países Baixos (todos também com melhores sistemas de saúde que o português) têm outros modelos com uma grande participação da iniciativa privada.
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