O Serviço Nacional de Saúde (SNS) de Portugal enfrenta diversos desafios que necessitam de soluções urgentes. Entre os principais problemas estão as dificuldades nas urgências, o aumento dos tempos de espera e a sobrecarga dos profissionais de saúde. Ao olhar para o passado, recordo que muitos Serviços de Atendimento de Situações Urgentes (SASU) foram encerrados fora do horário de trabalho nos cuidados de saúde primários, mas agora há planos para reabri-los. Em quase 25 anos de profissão, sempre ouvi promessas políticas para que os centros de saúde funcionem em horário pós-laboral ou mais recentemente a prometida atualização da app SNS24, permitindo, assim como outras soluções na área privada, um agendamento de consultas médicas ou de enfermagem de forma mais ágil e integradora para os utentes, para já não falar na teleconsulta.
A raiz deste problema não reside em acontecimentos isolados ou fatores externos imprevisíveis, mas numa série de erros estratégicos cometidos ao longo do tempo, que subestimaram o potencial do SNS e não aproveitaram a capacidade de uma resposta integrada de todas as profissões de saúde. A subutilização das competências de outros profissionais, onde incluo os enfermeiros e outros técnicos de saúde, tem sido uma constante, refletindo um modelo que já não responde às necessidades de um SNS que precisa urgentemente de se adaptar. A transformação do SNS não pode mais ser adiada, pois sem ela continuaremos a arrastar-nos para o abismo, ou pior para uma privatização que ninguém quer, a não ser os grupos privados.
Um exemplo recente, como a retirada dos enfermeiros dos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) em 2010 é um exemplo claro desta subvalorização das competências de outros profissionais, nomeadamente dos enfermeiros. A decisão, anunciada pelo então Secretário de Estado da Saúde na altura, foi uma medida puramente economicista que, apesar de ter sido imposta com a promessa de uma gestão mais eficaz, revelou-se prejudicial à eficiência do sistema de urgência. A crítica foi imediata, vinda de sindicatos e profissionais de saúde, que apontaram os riscos desta decisão para a qualidade do atendimento. Só em 2024, mais de uma década depois, o regresso dos enfermeiros ao CODU foi finalmente reconhecido como uma medida necessária para aliviar a sobrecarga de trabalho no atendimento de urgência, o que poderia ter sido evitado se o SNS tivesse adotado uma abordagem mais integrada e menos hierárquica. Para que o SNS evolua, precisamos de investir na colaboração interprofissional, onde cada profissional contribua com o seu know-how específico.
Outro exemplo claro dessa resistência à mudança ocorreu com a implementação da Triagem de Manchester. Fui um dos primeiros enfermeiros, em 2001, a implementar este protocolo em Portugal, num cenário de fortes pressões políticas e corporativa. A introdução da triagem por enfermeiros, com um protocolo estruturado e internacionalmente reconhecido, visava agilizar a resposta nas urgências e garantir uma distribuição mais eficiente dos recursos. No entanto, na altura, houve resistência à ideia de que esta triagem fosse implementada. Durante a sua implementação, enfrentou-se inúmeras dificuldades iniciais para garantir que o protocolo de Manchester fosse aplicado de forma eficaz. Este episódio é simbólico da dificuldade em aceitar o potencial das outras profissões na gestão do SNS, impedindo avanços na qualidade do atendimento. Ou seja, em Portugal a Triagem de Manchester poderia ter sido implementada mais cedo e de forma mais eficaz, não fosse a falta de visão para a complementaridade das profissões.
Além disso, a fuga de profissionais de saúde, para o estrangeiro é um fenómeno que não pode ser ignorado. A insatisfação com as condições de trabalho no SNS, nomeadamente com os baixos salários, a falta de progressão na carreira e a sobrecarga de trabalho, tem levado muitos profissionais portugueses a emigrar. Esta perda de talentos tem um impacto direto no funcionamento do SNS, pois privamos o SNS de profissionais altamente qualificados, ao mesmo tempo que aumentamos as dificuldades para atrair novos profissionais para o país. A fuga é transversal a todas as áreas da saúde e agrava o ciclo de insatisfação, escassez e sobrecarga dos que permanecem no sistema.
A solução para os problemas do SNS não está em medidas pontuais e temporárias, mas numa transformação profunda e estrutural do modelo de saúde. É preciso olhar para o SNS não como um sistema médico-centrado, mas como um sistema centrado no cidadão, onde todas as profissões de saúde desempenham um papel crucial. É necessário promover a complementaridade de competências, em que médicos, enfermeiros, técnicos e outros profissionais de saúde colaborem de forma eficaz para a entrega de cuidados de saúde de qualidade. Para isso, é imprescindível integrar a inteligência artificial no processo, de forma a otimizar a gestão dos cuidados, a triagem e a análise de dados clínicos, permitindo aos médicos concentrar-se em decisões mais complexas e no diagnóstico. O futuro do SNS passa por um modelo mais colaborativo e tecnologicamente avançado, onde a tecnologia e as competências de todos os profissionais de saúde são utilizadas de forma a otimizar o atendimento e a melhorar a eficiência.
Porém, a transformação não pode parar, como vários reformas que nunca avançaram, sendo o exemplo : a reforma da Direção-Geral da Saúde (DGS) e ou dos Serviços de Saúde Pública, da qual já escrevi sobre o assunto ( ver artigo aqui ) . Considero ainda que é imperativo que exista uma reforma dos serviços de saúde pública de forma a que passe a haver uma supervisão rigorosa dos registos clínicos e das boas práticas em saúde, assegurando a sua sistematização e aplicação uniforme. Adicionalmente, torna-se crucial que os responsáveis pela gestão dos programas prioritários em Saúde da DGS e as respetivas equipas se dediquem exclusivamente a este trabalho, permitindo um acompanhamento mais eficaz, célere e melhore a comunicação com as equipas operativas.
O atual modelo de gestão do Serviço Nacional de Saúde (SNS), marcado por uma burocracia excessiva e pela ausência de coordenação eficaz entre os seus diversos níveis, revela-se inadequado para enfrentar as crescentes exigências e os desafios futuros. Esta inércia tem repercussões diretas, traduzindo-se em ineficiência, desperdício de recursos e impactos negativos nos indicadores de saúde. A colaboração entre médicos, enfermeiros e técnicos de saúde deveria ser o pilar de um SNS eficiente e humano. No entanto, esta sinergia é frequentemente minada por barreiras institucionais e tecnológicas. Um exemplo gritante é o SClínico, o sistema de registo de informação clínica, que não permite que os médicos acedam às anotações feitas por enfermeiros ou outros técnicos de saúde, e cujos registos, muitas vezes, não aparecem no Registo Eletrónico de Saúde. Esta lacuna impede uma verdadeira partilha de informações, atrasando decisões clínicas e comprometendo a continuidade dos cuidados. Frequentemente ouço alguns profissionais de saúde referirem que, antigamente, com o papel, era mais fácil aceder à informação sobre os utentes. Ora, se não podemos, nem devemos regressar ao passado, temos de melhorar os sistemas de informação atuais, promovendo uma integração mais eficiente e garantindo que os utentes e todos os profissionais tenham acesso ao que se escreve e faz.
Ainda focando-me nas recentes alterações no SNS ocorridas em Portugal, a criação das Unidades Locais de Saúde (ULS) surgiu como uma solução promissora para integrar cuidados de saúde primários, hospitalares e continuados, promovendo uma maior proximidade e continuidade nos cuidados. A ULS de Matosinhos, pioneira nesta abordagem, estabeleceu um modelo organizacional diferenciado, sustentado numa forte cultura de inovação e numa visão integrada do sistema. Contudo, o país não soube capitalizar esta experiência. Na minha opinião, em vez de se replicar e adaptar as boas práticas e a cultura organizacional desta unidade a nível nacional, cada nova ULS tem-se desenvolvido de forma autónoma, sem uma orientação central ou uma linha condutora clara por parte da tutela.
Esta fragmentação organizacional representa uma oportunidade perdida para criar sinergias entre as unidades e para assegurar uma resposta coordenada e uniforme. A ausência de uma estrutura central que defina padrões e alinhe objetivos prejudica a eficiência e a eficácia destas entidades, que acabam por funcionar como sistemas isolados em vez de partes integradas de uma rede. É essencial aprender com o exemplo da ULS de Matosinhos, desenvolvendo um modelo que promova uma cultura de aprendizagem contínua, inovação e partilha de boas práticas, garantindo assim que as ULS possam cumprir plenamente o seu potencial enquanto motores de transformação no SNS..
Ao aproximar-me dos 25 anos de carreira enquanto Enfermeiro Especialista em Saúde Pública, pergunto-me: o que esperar dos próximos 25 anos e do SNS? O SNS português, apesar dos desafios, foi reconhecido como um dos melhores serviços de saúde do mundo, um testemunho do empenho dos seus profissionais e da eficácia de muitas das suas políticas públicas. Por outro lado a sua transformação para os novos desafios exige coragem política, inovação e uma mudança de mentalidade que valorize todos os profissionais, integre novas tecnologias e coloque o cidadão no centro do sistema.
Continuar a repetir os erros do passado não é uma opção. O futuro do SNS dependerá das escolhas e das reformas que se implementarem agora. Que este seja o momento de virar a página e de garantir que, daqui a 25 anos, possamos olhar para trás com orgulho pelo caminho percorrido e não a recordar erros.
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