A Medicina Geral e Familiar, outrora celebrada como a porta de entrada do Serviço Nacional de Saúde, parece hoje condenada ao esquecimento funcional. Não por falta de provas do seu valor — que as há e em abundância — mas talvez porque, em Portugal, a memória política é curta e a gratidão, um conceito quase exótico.
A Medicina Geral e Familiar já atingiu a maturidade como especialidade, com uma experiência atual de mais de 35 anos, deu os primeiros passos já em liberdade em 1971 com os primeiros Centros de Saúde que rapidamente se transformaram na porta de entrada dos portugueses no sistema de saúde e são desde então o primeiro contato no Sistema Nacional de Saúde. Em 2005 a reforma dos Cuidados Primários levou à criação à criação das Unidades de Saúde Familiares (USF), trazendo maior autonomia e eficiência económica ao sistema e maior satisfação aos utentes e profissionais.
A literatura científica é clara: médicos de família reduzem a mortalidade infantil, controlam doenças crónicas, diminuem internamentos evitáveis e promovem equidade, especialmente em áreas rurais, ao oferecer cuidados pré-natais e perinatais abrangentes.[1] [3] Além disso são essenciais no acompanhamento de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, promovendo melhor controle clínico e reduzindo complicações e internamentos evitáveis.[2][3] O acesso à vacinação e a abrangência de intervenções preventivas como o rastreio de várias doenças oncológicas e cardiovasculares são mais efetivos em contextos onde a sua presença mais se faz sentir, melhorando indicadores populacionais de saúde.[2][1]
Muito valorizado pelos utentes é a capacidade dos Médicos de Família de promoverem equidade, atendendo populações muito diversas e vulneráveis, o que contribui para a diminuição de disparidades em saúde e a democratização do acesso aos mesmos.[3] Por fim contribuem para à redução de custos e à maior eficiência do sistema de saúde, refletindo-se em melhores indicadores globais.[3]
Cuidados Primários fortes reduzem os gastos em saúde e os internamentos por meio de três mecanismos: aumento da acessibilidade às consultas, o tratamento cada vez mais eficiente de utentes de alto risco e a oferta de cuidados abrangentes e integrados. também se demonstrou redução significativa nos custos, principalmente nas patologias em que estes são mais interventivos (4,5).
Um acompanhamento por médico de Família está associado a menor risco de hospitalizações e quando ocorrem são menos prolongados, especialmente em utentes de alto risco (6,7).
Com a pandemia, os médicos de família deixaram de ser clínicos para se tornarem peões administrativos: vigiaram contactos, emitiram certificados de incapacidade temporária, preencheram formulários em plataformas informáticas. E perderam — por decreto ou por cansaço — tempo, eficácia e prestígio, prejudicando os seus utentes. Agora, com a intrusão das Unidades Locais de Saúde a autonomia das USF está a ser posta em causa, por uma lógica hospitalocêntrica que desrespeita o trabalho em equipa, impõe indicadores de validade cientifica duvidosa e transforma as métricas dos indicadores financeiros em chantagem disfarçada de avaliação de desempenho.
Atualmente estão afundados em trabalho burocrático e tarefas como a distribuição de fraldas e pensos higiénicos.
A outra preocupação está relacionada com a emissão dos Atestados Médicos de Incapacidade Multiuso (AMIM), que com a desmaterialização dos processos da junta médica de avaliação de incapacidade, com dispensa de junta médica de avaliação de incapacidade e que vão poder ser passados pelos médicos de família entre outros especialistas. Esta alteração traz duas potenciais ameaças à Medicina Geral e Familiar, por um lado a sua acessibilidade, transforma-se no seu Calcanhar de Aquiles, levando este trabalho extra a diminuição do tempo para o acompanhamento da família ao longo do seu ciclo de vida, das atividades preventivas nos grupos de risco e vulneráveis e do acompanhamento das várias doenças crónicas, por outro lado coloca em risco o cumprimento do próprio código deontológico, pois cada vez que o resultado destes AMIM forem contrárias às expetativas dos utentes pode fragilizar e destruir a relação terapêutica médico-utente que em alguns casos demorou muitos anos a construir.
Em última instância a degradação desta especialidade tão nobre irá afetar principalmente os utentes e com certeza entre estes os que apresentam maior fragilidade económica e social.
Bibliografia
- The Potpourri of Family Medicine, in Sickness and in Health. Bowman MA, Neale AV, Seehusen DA. Journal of the American Board of Family Medicine: JABFM. 2018 Jul-Aug;31(4):495-498. doi:10.3122/jabfm.2018.04.180136.
- Trends and Quality of Care in Outpatient Visits to Generalist and Specialist Physicians Delivering Primary Care in the United States, 1997-2010. Edwards ST, Mafi JN, Landon BE. Journal of General Internal Medicine. 2014;29(6):947-55. doi:10.1007/s11606-014-2808-y.
- Re-Examining the Roles of Generalists and Specialists in Healthcare. Khatri P, Nastar A, Teng GG, Phua J. Annals of the Academy of Medicine, Singapore. 2023;52(3):149-153. doi:10.47102/annals-acadmedsg.2022434.
- Reducing Acute Hospitalizations at High-Performing CPC+ Primary Care Practice Sites: Strategies, Activities, and Facilitators. Petersen DM, O’Malley AS, Felland L, et al. Annals of Family Medicine. 2023 Jul-Aug;21(4):313-321. doi:10.1370/afm.2992.
- More Comprehensive Care Among Family Physicians Is Associated With Lower Costs and Fewer Hospitalizations. Bazemore A, Petterson S, Peterson LE, Phillips RL. Annals of Family Medicine. 2015 May-Jun;13(3):206-13. doi:10.1370/afm.1787.
- Strong and Sustainable Primary Healthcare Is Associated With a Lower Risk of Hospitalization in High Risk Patients. Sawicki OA, Mueller A, Klaaßen-Mielke R, et al. Scientific Reports. 2021;11(1):4349. doi:10.1038/s41598-021-83962-y.
- The Association Between General Practitioner Regularity of Care and ‘High Use’ Hospitalisation. Moorin RE, Youens D, Preen DB, Wright CM. BMC Health Services Research. 2020;20(1):915. doi:10.1186/s12913-020-05718-0.
0 Comments