Ao HealhtNews, Amílcar relembra os sarilhos com a igreja, as dificuldades em estabelecer uma associação sem fins lucrativos num tempo bem diferente e os problemas de comunicação do VIH nos dias de hoje.
HealthNews – Quando e porque surge a Associação Positivo?
Amílcar Soares – A associação surge depois de eu me ter assumido publicamente seropositivo, em 1989. No ano seguinte fiquei desempregado e com isso bastante em baixo, e necessitei de apoio psicológico que me foi prestado no Hospital de São João, no Porto, onde estava a estudar.
Ao fim de algum tempo decidi aproveitar o conhecimento que fui adquirindo para ir falar com alguns doentes que estavam nas salas de espera para as consultas relacionadas com o VIH-SIDA, e que não tinham nenhuma noção daquilo que se estava a passar com eles em termos de VIH, até porque havia muito pouca informação disponível ao público em geral.
No ano seguinte regressei a Lisboa e reparei que só havia um sítio a ajudar os doentes com VIH. Eles angariavam uns fundos mas não tinham mesmo mais nada, nem sequer um encontro para doentes com VIH. Então criámos uma associação que hoje se chama Centro São Martinho de Lima, que estava ligada à igreja dominicana. Cederam-nos um espaço e transmitíamos informação às pessoas com VIH, mas como a associação estava ligada à igreja, acabámos por ter alguns problemas em falar sobre preservativos. Naquela altura esta era uma questão particularmente complicada, não podíamos simplesmente dizer às pessoas que não podiam fazer sexo, e a associação não gostou disso apesar de não implementarmos o sexo pelo sexo.
Dentro desta associação tínhamos o nosso grupo, que se chamava “Positivo”. Três de nós que estávamos a prestar apoio direto a estas pessoas decidimos sair e criar uma instituição à parte. Foi ai que tudo começou, mas só em 1993 é que conseguimos ser oficializados em Diário da República e todas essas burocracias, que na altura eram muito mais complicadas.
HN – E quando a Positivo é criada surge a oportunidade de ter uma agenda própria. Que apoios pretendiam prestar à população infetada?
AS – Era sobretudo apoio psicológico nesta altura. Eu fui ajudado por um psiquiatra na altura, no Hospital São João, que era um médico muito especial. Ele era dos poucos que não tinha problemas em ir ter com as pessoas ao internamento e apoiá-las até uma fase final numa altura em que ainda havia muita gente com muito medo desta doença. Havia muita desinformação, inclusive a ideia de que a SIDA se propagava pelo ar, em 1988 e até cerca de 1991.
Foi com este médico que tive acesso a mais conhecimentos que eram publicados em revistas estrangeiras como a TIME, por exemplo, e decidi passar a tentar informar as pessoas sobre o que se estava a passar com elas. Tentava faze-lo com uma linguagem menos clínica, mais próxima das pessoas, e isso passou a ser um fator decisivo. Não prestava apoio psicológico certificado, mas deixava as pessoas desabafar e confortava-as dando-lhes a ideia de que havia coisas que podíamos fazer.
Nesta altura, cada pessoa achava que era a única que tinha VIH porque ninguém falava de nada nem se identificava ou apresentava como seropositivo. Criou-se uma situação em que todas as pessoas que se encontravam na sala de espera para a consulta, sabendo que iam todos para o mesmo, faziam de conta que não era nada com elas. Foi assim que comecei a falar com as pessoas, na sala de espera para as consultas.
A ideia por trás da Positivo era isto: arranjar um espaço físico onde as pessoas pudessem vir para ser esclarecidas e ajudadas nas suas angústias. Arranjámos uma sala para reuniões semanais e foi assim continuando, até 1998.
Em 1996 apareceu em Portugal a Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, que queria implementar um programa nacional de luta contra a SIDA e que foi quem conseguiu recolher fundos junto da Santa Casa da Misericórdia provenientes do jogo, que eram para ser distribuídos por pessoas com VIH. A Positivo apresentou o seu projeto e, por volta de abril de 1998, recebemos a notícia de que nos ia ser disponibilizado algum deste dinheiro para que avançássemos com as nossas ideias. Desde essa altura que nos mudámos para a Rua de São Paulo, onde permanecemos ainda.
HN – Anos depois, com mais fundos e avanços no combate à SIDA, imagino que a visão inicialmente prevista para a associação se tenha alterado.
AS – Continua a ser essencialmente a mesma, até porque as pessoas continuam à procura de conforto. Alargámos só o espetro porque passou a haver mais consciência em relação aos problemas sociais e económicos, coisas como ter um passe de autocarro ou comida. Algumas das pessoas que ajudamos não têm acesso a estas coisas porque são migrantes e estão bastante desenraizados de tudo isto.
Hoje já não há tanta gente a querer conhecer outros doentes com SIDA; passou a ser um caminho mais individual.
A associação também cresceu e começou a apresentar mais respostas, como um psicólogo e uma assistente social. Temos também um espaço para uma animadora sociocultural e tivemos também um projeto com ma associação que entretanto acabou em que continuámos a apresentar as soluções deles para trabalhadores sexuais da zona. Tínhamos um espaço onde ia uma médica que fazia testes rápidos, quando apareceram, PCR e era-lhes dada medicação caso precisassem, mas sempre marcámos a diferença pela maneira como interagíamos com as trabalhadoras sexuais. Não íamos tanto à rua, mas contactávamo-las pelos anúncios nos jornais como há ainda os “classificados”, que é profícuo neste tipo de coisas. Púnhamos lá informação específica para elas sobre as nossas ofertas e era muito importante porque nos ajudava a distribuir material de proteção, sobretudo.
Quanto ao apoio aos doentes com VIH, esse mantém-se hoje essencialmente na mesma linha. Há algumas coisas que as pessoas querem de diferente, mas no fundo é o mesmo: alguém que os ouça, seja uma pessoa normal ou um psicólogo para ajuda mais a fundo. Se tiverem alguma necessidade a nível social, também tentamos avançar para algum apoio dentro das nossas capacidades. Também fazemos testes rápidos e, caso dê positivo, colocamos a pessoa em contacto com o hospital que lhe convier, se assim quiserem, e mantemos uma relação com eles para os acompanhar ao longo do processo.
HN – O Amílcar está na Positivo há 25 anos e ligado à causa há mais tempo do que isso. Nota alguma diferença, com o passar dos anos, nas necessidades destes doentes e nas respostas dadas pelas associações e pelo estado?
AS – A partir de 1996, quando se passou a dizer que “já ninguém ia morrer”, o VIH passou a ser um problema muito menor, porque as pessoas já iam conseguir bastante tempo de vida. O VIH deixou de ser falado e de aparecer na primeira página dos jornais. Ultimamente só aparece mesmo por volta desta altura, em dezembro.
Nas escolas, a informação tem partido de programas muito básicos, ou então há professores envolvidos na questão e fazem apresentações menos comuns e focadas no problema. Por vezes somos convidados, mas este ano, por razões óbvias, isso não aconteceu.
Tento sempre responder às perguntas dos alunos e vai havendo uma interação, quase como se fosse contando uma história com base nas perguntas que me fazem, mais do que uma aula planeada. No fim deixo-os sempre fazer perguntas mais pessoas, e geralmente perguntam-me se sou seropositivo, há quanto tempo, o que é que sinto, se posso ter filhos… Coisas que muitas vezes não são faladas
A nível das pessoas com VIH, há sempre pessoas que vão precisar de algum apoio não só psicológico, mas também monetário para pagarem a renda e assim. Mas, sem querer ser mal interpretado, isso são problemas transversais à nossa cidade (Lisboa), onde ganhamos todos pouco. Não é algo específico das pessoas com VIH, que já não pagam as consultas, nem as análises nem a medicação. Aliás, era impossível pagarmos os medicamentos se não fossem comparticipados. Isto leva a uma melhoria em termos de saúde e uma redução da proliferação do vírus, mas para a qualidade de vida há muitas outras coisas que faltam. As pessoas ainda são discriminadas no trabalho e até dentro da família.
Ainda em relação à qualidade de vida, incentivamos sempre os doentes com VIH a trabalhar. Mesmo que tenham de ficar de baixa de tempos a tempos, o melhor para elas é trabalhar para que não fiquem em casa a remoer na situação, que não ajuda nada à saúde física nem mental.
HN – Aproxima-se o dia Mundial do Combate à SIDA e gostava de saber se têm alguma coisa programada para celebrar a data.
AS – Há uns anos faziam-se uns encontros entre as associações, mas isso foi-se deixando cair. Hoje achamos que este é um dia de reflexão para fazermos um ponto de situação. Fazemos coisas o ano inteiro e há mais ainda para fazer, mas não é neste dia.
Para os próximos meses gostaríamos de nos debruçar sobre a “invisibilidade”. Queremos todos cumprir com os objetivos da Organização Mundial de Saúde – os “quatro 90” – mas é preciso que as pessoas queiram ir fazer os testes, e é preciso que haja uma resposta rápida às pessoas que acusam positivo no teste. É necessário que as pessoas vão buscar o medicamento e que o tomem. Agora, receber o medicamento em casa e, como eu vi durante muitos anos, as pessoas a guardarem-nos em casa, debaixo da cama, porque não o querem tomar, não é nada convincente. É uma despesa enorme.
É importante de que as pessoas estejam cientes de que devem fazer o teste e ir às consultas. As consultas devem ser seguidas de uma resposta rápida, sobretudo após a primeira consulta, porque só assim é que as pessoas não fogem, e há que trabalhar bem estas pessoas para que elas adiram à terapêutica e não fujam para lado nenhum.
Entrevista de João Marques
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