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Corpo “máquina”, corpo “placebo” e corpo “Covid-19”
Em tempos de Covid-19, é fácil ser infectado pelos discursos omnipresentes (acerca) do Corpo. Felizmente, é quando somos agredidos que mais nos damos conta da salubridade da vida. Pode ser que esta seja, igualmente, ilusória, mas vale bem o risco de nos tornarmos donos de um corpo que a Sociedade demoniza. É caso de patologização social, bem mais do que física, e qualquer vacina só poderá funcionar já depois do mal instalado.
Nos antípodas, atemos um corpo “máquina” e um corpo “placebo”. É a doença que os polariza, atraindo a cura. O primeiro fusiona “saúde” e “produção”, desmantelando a estrutura em peças vendáveis. Assim, convém olear a máquina para que ela se multiplique. O desempenho estraga-a, mas a “reabilitação” permite prolongar o tempo de utilização, para que a “máquina” possa ser “mantida” pela mesma reabilitação. Há, ainda, o caso emblemático da fisioterapia desportiva, que lhe acresce o factor “placebetário”: o corpo-máquina é extremado, em nome da taça e do entretenimento das massas, a fisioterapia do desporto permite manter a relação, garantindo, também, que os clientes se tornem dependentes de um viático.
No acordo com a “Sociedade de espectáculo”, o viático da massificação resulta às mil maravilhas, e, nele, o corpo “placebo” desempenha um papel de aperfeiçoamento da ilusão. É por isso que as medicinas “não convencionais” são mais “complementares” do que concorrentes, elas só são “inimigas” porque arriscam “interiorizar” o que a hodiernidade pretende calar; inútil tal preocupação, porque os pacientes gostam de permanecer pacientes, não querem ter de se ocupar de uma consciência que periga a solução do mundo.
O Covid-19 polariza os dois “corpos”: de um lado, temos os supostos “realistas”, que procuram febrilmente uma cura, capaz de re-normalizar a situação; do outro, temos os “idealistas”, que não acreditam na doença, somente na sua causa emocional, perante a qual, não só requerem uma mudança de paradigma, como sugerem estar há muito tempo em rota de colisão com a normalidade.
Cada um dos pólos arrisca o futuro, pelo que o “corpo Covid-19” tem de, em simultâneo, incluí-los e rejeitá-los. A proposta de uma vericidade impõe um rigor clínico, científico, céptico, mas, igualmente, idiossincrático e psicossocial. A doença lembra-nos que temos usado, constantemente, o nosso corpo, seja como território químico sem história, seja como terreno de ilusionismo bacoco. A tríade Fitness + Wellness + Terapias não convencionais possui, bem vendo, um intento de subjugação do corpo perfeitamente compatível com um modelo que denega a “racionalidade libidinal” (Marcuse). Não é melhor este “espírito” de plástico do que a atitude aparentemente cínica da modernidade “positiva”. O que o “corpo Covid-19” nos propõe, mais do que nunca, é a desmitificação “record” dos territórios vigentes. Num tempo em que “egos” poderão matar mais do que a doença, é preciso clarificar os lugares do que sabemos e podemos saber. E isto implica que a Saúde é impartível da Filosofia, e a ciência da epistemologia. Para que soçobre um corpo tão “reabilitado” que seja capaz de (se) reabilitar continuamente na relação com os seus próprios fantasmas.
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