No Hospital Beatriz Ângelo, o Dr. Alexandre Ferreira teve oportunidade de utilizar, durante um mês, o primeiro sistema de deteção que utiliza a inteligência artificial para identificar adenomas durante a colonoscopia de rotina. Com essa experiência, o gastroenterologista percebeu a importância de trazer esse equipamento para o ambiente hospitalar. “É quase como se tivéssemos um segundo especialista treinado para detetar estas lesões”, por isso “será certamente uma mais-valia num futuro” próximo, explicou-nos Alexandre Ferreira. “Estamos a começar” com a inteligência artificial, disse o médico, mostrando-se entusiasmado com os benefícios da tecnologia no campo da saúde. Antes, falou-nos do grande impacto da pandemia de Covid-19 “em todos os serviços de gastroenterologia”.
HealthNews (HN)- Qual foi o impacto da pandemia de Covid-19 nos rastreios de diagnóstico de cancro colorretal?
Alexandre Ferreira (AF)- Houve um grande impacto, quer a nível hospitalar, quer a nível das clínicas, unidades convencionadas com o SNS, das clínicas privadas, dos grandes hospitais privados. Houve um impacto muito grande em todos os serviços de gastroenterologia. Por segurança, fez-se, entre dois/três meses, apenas os exames que eram considerados urgentes. Por exemplo, no cancro do cólon, os médicos de família fazem um teste, que é o sangue oculto nas fezes; se for positivo, faz rastreio. Portanto, são doentes que têm uma probabilidade de ter cancro maior do que um doente normal de 50 anos que tem indicação para rastreio. Mesmo estes acabaram por ser adiados.
Aos poucos, a atividade foi retomando, mas penso que nunca terá atingido níveis semelhantes ao que seria de pré-pandemia. Portanto, todos estes exames, que eram muito importantes, nomeadamente no âmbito do rastreio do cancro do cólon e reto, acabaram por ser adiados ou não realizados, certamente, em virtude do impacto da pandemia. E isto foi real tanto a nível hospitalar como não hospital.
HN- É possível recuperar o tempo perdido?
AF- Penso que não porque os serviços já trabalhavam a uma velocidade alta. Tentamos sempre fazer o máximo possível. A maior parte dos hospitais do SNS já atua em níveis muitos elevados. Conseguir, em cima disso, voltar atrás vai ser muito complicado sem medidas específicas para esse efeito. No privado, acredito que seja possível compensar. No público, muito dificilmente se conseguirá dar essa volta.
HN- Estão a receber doentes com cancro mais avançado?
AF- Precisávamos de ter uma análise sistematizada, tentar perceber a nível de incidência do cancro do cólon e reto nos últimos anos e agora nos próximos dois anos, eventualmente, para perceber o efeito. Porque com o rastreio do cancro do cólon, com a colonoscopia nós conseguimos reduzir, por um lado, a mortalidade – detetamos doença num estadio precoce -, mas também conseguimos reduzir a incidência de cancro. Nós removemos pequenas lesões antes de serem cancro. Se eu tirar um pólipo hoje, estou potencialmente a evitar um cancro daqui a cinco, daqui a 10 anos. Portanto, é muito difícil nós quantificarmos esse impacto da melhor forma possível. Esse exercício é muito difícil. Neste momento, é impossível. Daqui a uns anos, será muito difícil podermos ter uma ideia desse impacto. Em casos pontuais, a verdade é que já tivemos doentes que tinham sintomas no início do ano passado ou que tinham exame marcado para o ano passado. Esse exame, pela pandemia, ou foi adiado por decisão da instituição ou a própria pessoa teve medo e remarcou o exame, pediu para não fazer. Eu tenho um caso desses – uma senhora que tinha uma lesão já diagnosticada (não era do intestino, era do estômago) e tinha o exame marcado. A senhora recusou por duas vezes e, no início deste ano, quando vem fazer o exame, era uma lesão que há um ano atrás era benigna e que agora já era um cancro do estômago avançado. Portanto, casos pontuais nós vemos; de uma forma concreta, a estimativa desse impacto, isso ainda não conseguimos dizer.
HN- Que necessidades não satisfeitas o único sistema de inteligência artificial disponível no mercado vem colmatar?
AF- Nós temos várias formas de fazer rastreio do cancro do intestino, que são importantes porque permitem-nos, nomeadamente naquela que nós consideramos como a preferencial, que é a colonoscopia, reduzir a incidência e a mortalidade por cancro do intestino. O que acontece é que a colonoscopia não é infalível, ou seja, não tem uma eficácia de 100%. E há lesões, nomeadamente pequenas, que podem passar, seja porque têm uma morfologia que é mais difícil de detetar, por estarem atrás de uma prega do intestino, e é mais difícil de detetar pela anatomia do intestino, porque o intestino contrai naquele momento, porque a preparação não é tão boa, porque a pessoa que está a fazer o exame pode estar mais cansada ou pode-se distrair momentaneamente, porque não somos máquinas. Temos dados que nos dizem que uma colonoscopia falha qualquer coisa com 20% das lesões. Depois ainda é variável, dependendo da pessoa que está a fazer o exame, dependendo do equipamento que se está a usar. Por isso, partimos do princípio de que a colonoscopia é eficaz, permite reduzir o cancro do intestino, mas não é 100% eficaz a encontrar todas as lesões que são potencialmente precursoras de cancro.
Nos últimos anos, temos vindo a tentar desenvolver intervenções e inovações que nos permitam melhorar a nossa capacidade de detetar lesões, portanto, melhorar aquilo a que chamamos de qualidade em colonoscopia, que é a nossa capacidade de detetar lesões no sentido de reduzir ainda mais o risco do cancro do intestino. Nós sabemos, e está estimado, que por cada um por cento de aumento na taxa de deteção de adenomas – que é no fundo a medida que nós usamos para ver quantas lesões é que encontramos – temos qualquer coisa como um impacto de redução de três por cento no cancro do cólon. Portanto, é muito significativo, e nós temos que trabalhar e temos trabalhado para tentar aumentar esta nossa capacidade de detetar lesões. A inteligência artificial, com o grande boom que houve nos últimos anos computacional, permitiu desenvolver equipamentos com softwares que conseguem aprender a reconhecer lesões e ajudar o médico que está a fazer o exame, em tempo real, a detetar as lesões. O equipamento está ligado em sintonia com o equipamento de endoscopia tradicional e, enquanto estamos a fazer uma colonoscopia, vai detetar lesões. Deteta algumas lesões que nós não detetaríamos; outras deteta talvez mais rápido do que nós detetaríamos; outras detetamos nós (o equipamento também não será a 100%). Mas sabemos que, e isso foi estudado e daí a aprovação, esse equipamento permite-nos aumentar a tal taxa de deteção de adenomas. Portanto, ajuda-nos a encontrar mais lesões – na maioria dos casos, lesões que são precursores de cancro – e está-nos a tornar mais eficazes a reduzir o risco de ter cancro e de morrer por cancro.
HN- Em que centros é que este novo sistema já está a ser utilizado?
AF- Que eu tenha conhecimento, ainda não está a ser utilizado. Nós tivemos oportunidade de utilizar esse equipamento no Hospital Beatriz Ângelo no âmbito de um programa de formação e tivemos o equipamento durante cerca de um mês, que nos foi cedido para utilização. Essa experiência foi muito interessante. Achámos que de facto trazia benefício, ajudava-nos durante os procedimentos. Para além da identificação das lesões, identificava muito rápido, portanto até podíamos ganhar algum tempo de exame e tínhamos mais tempo para ver, e era muito fácil de usar. Há questões que naturalmente se vão colocar com o tempo, nomeadamente em termos de formação, mas o equipamento estar disponível é quase como se estivesse um segundo especialista durante o exame. Não é apenas o especialista que está a fazer o exame e os olhos do especialista. Nós sabemos que quantas mais pessoas [treinadas] estiverem a olhar, melhor. Há estudos em que ter um enfermeiro também atento às lesões ajuda à tal taxa de deteção. Por isso, ter aqui o equipamento disponível é quase como se tivéssemos um segundo especialista treinado para detetar estas lesões. E o equipamento de inteligência artificial faz justamente isso e continua a ser aprimorado em função da sua capacidade de aprender com a experiência própria. Será certamente uma mais-valia num futuro muito em breve.
HN- Quais os grupos-alvo principais ou os grupos que beneficiariam mais deste sistema?
AF- Eu penso que este sistema seria benéfico para todas as pessoas, ou seja, não em grupos específicos. Para todas as pessoas que têm indicação para fazer uma colonoscopia, pessoas que nunca tiveram queixa nenhuma e que têm mais de 50 anos, pessoas que tenham feito a tal análise de sangue oculto nas fezes, pessoas que tenham história na família de cancro do intestino, pessoas que já tiveram pólipos no passado e que fazem a vigilância dos seus pólipos, bem como pessoas que vão fazer por sintomas, se tiverem a perder sangue, se tiverem dor, se tiverem alteração do trânsito do intestino, perda de peso… Todas elas beneficiam, porque vamos detetar mais lesões. No caso de uma doença aguda, uma pessoa com uma hemorragia digestiva muito grande, aí não terá impacto. Mas na grande maioria dos exames que nós fazemos, nestes tais exames eletivos, no âmbito de diagnóstico e de rastreio de cancro do intestino, aí sem dúvida que será uma mais-valia para todos esses doentes.
HN- Quais são os benefícios em comparação com a colonoscopia tradicional?
AF- Aquilo é a colonoscopia tradicional, feita com equipamento tradicional, com o médico, e depois, em cima disso, tem este dispositivo de inteligência artificial que analisa a imagem ao mesmo tempo que o médico e que ajuda a identificar as tais lesões. Mas acaba por ser sempre o médico que decide se há uma lesão, se não há uma lesão e o que fazer a essa lesão. Não será uma alternativa [à colonoscopia].
HN- Quer deixar alguma nota final?
AF- Em relação a esta nova realidade que é a inteligência artificial, a colonoscopia é se calhar um meio ótimo para a introdução de equipamentos com esta tecnologia. Certamente seguir-se-ão outros. Estamos a começar. A inteligência artificial está a aparecer. Certamente que vai ser um recurso, a curto prazo, muito útil, tanto neste tipo de técnicas que usa imagens, como na análise de grandes quantidades de dados que possamos ter e que atualmente não conseguimos utilizar da melhor forma. Será uma ajuda no campo da saúde muito importante nos próximos anos. Esta é a primeira grande aplicação para a gastroenterologia a ser aprovada e que trará benefícios significativos naquilo que foi o cancro mais frequente em Portugal em 2020. Portanto, parece-me de grande utilidade.
Entrevista de Rita Antunes
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