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Dos quilómetros na estrada às maratonas em videoconferência
Desde há mais de três anos, altura em que tomei posse para o meu primeiro mandato como bastonário da Ordem dos Médicos, que a vida na estrada passou a ser a minha nova rotina. Antes da pandemia, perdi a conta aos quilómetros que já fiz e quase arriscaria dizer que sei de cor as placas da autoestrada, sobretudo da A1, que faço frequentemente, entre a minha casa, no Porto, e a sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. Outras vezes o percurso é de avião. De hospital em hospital e de centro de saúde em centro de saúde, sempre privilegiei o contacto com o terreno e com os colegas – fazendo questão de manter eu próprio atividade clínica, nas consultas e transplantes, por ter a firme convicção que só a ligação aos serviços de saúde nos dá uma ideia correta do que realmente está a acontecer no nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS).
O início do meu segundo mandato coincidiu, porém, com aquela que seria a maior emergência de saúde pública internacional que alguma vez imaginaríamos e que alterou por completo a nossa forma de estar em sociedade, seja no trabalho ou em família. Entre a minha tomada de posse, em fevereiro, e o primeiro caso confirmado de COVID-19 em Portugal passou menos de um mês, sendo que grande parte deste período foi já dedicado à criação de um gabinete de crise para acompanhar esta pandemia e colaborar com as autoridades de saúde na análise de dados e partilha regular de recomendações que ajudassem o nosso país a superar este desafio. O tempo deixou de ser medido em quilómetros e passou a ser contabilizado em horas ao telefone ou em videoconferências.
A estrutura da Ordem dos Médicos tem, naturalmente, mantido muito do trabalho que não se compadece com esperar pelo fim da pandemia. Mas houve uma grande e rápida transformação na nossa nova forma de produzir. O recurso a plataformas de videoconferência são agora o novo normal, permitindo-me continuar a reunir com instituições e colegas de todo o país, desenvolvendo também projetos a uma velocidade recorde, muitos deles relacionados com a pandemia. A título de exemplo cito três parcerias: a criação da conta solidária Todos Por Quem Cuida, em parceria com a Ordem dos Farmacêuticos, e com o apoio de várias instituições e da sociedade civil; o desenvolvimento com a empresa Sysadvance de um ventilador português, idealizado e construído numa parceria entre médicos especialistas em medicina intensiva e engenheiros de enorme qualidade; a criação de um projeto de arquitetura e engenharia, com a assinatura de profissionais de excelência, para uma estrutura hospitalar modular, em parceria com a Associação Empresarial de Portugal, que pode ser construída de forma ágil, em qualquer hospital , permitindo aumentar a capacidade de resposta do SNS, com base num Centro de Infeciologia de referência e elevada diferenciação.
Mas esta crise chegou-nos numa altura em que o nosso SNS estava fragilizado em termos de infraestruturas, equipamentos e capital humano, o que nos fez partir ainda com mais dificuldade e com a certeza de que precisamos com urgência de voltar a valorizar o Estado Social e de reforçar os serviços públicos, muito em especial na saúde, cujo impacto na economia ficou mais do que explícito nas últimas semanas. Os profissionais que já faziam o SNS acontecer todos os dias – médicos, enfermeiros, farmacêuticos, assistentes operacionais, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, secretários clínicos, etc. – estão a dar uma resposta absolutamente extraordinária a este desafio.
É justo reconhecer que as dificuldades têm sido bastante minimizadas pelo espírito solidário e humanista dos nossos médicos e dos restantes profissionais de saúde, que têm deixado tudo para trás para poderem estar na linha da frente desta guerra biológica sem precedentes. Nos jornais, rádios e televisões são os heróis do momento, quando na verdade será mais correto dizer que são os heróis do costume, mas cujos rostos foram agora reconhecidos publicamente, ironicamente numa altura em que quase sempre trazem máscaras e viseiras.
Tenho-me recordado várias vezes das palavras do Prof. Daniel Serrão, desde que este surto entrou nas nossas vidas. “O médico pode atuar cumprindo os deveres estabelecidos pelos seus conhecimentos científicos e capacidades técnicas – e dá satisfação ao que a deontologia profissional impõe. É um técnico perfeito. Mas pode acrescentar à perfeição técnica a virtude pessoal que se manifesta na dedicação beneficente, na compaixão, no carinho, no desinteresse pelo valor material dos seus atos, pela honestidade intelectual, pela preocupação com a equidade e principalmente por uma prudência abrangente que é um juízo de sabedoria prática, a phronesis da ética aristotélica. Quero dizer que, na atividade médica, à dimensão de curar tem de estar justaposta esta outra dimensão do cuidar.” E nunca como hoje, com os doentes impedidos de estar com as suas famílias, foi tão valorizada a dimensão humana do cuidar e o tempo para a relação médico-doente que venho defendendo há vários anos, pelo que estou em crer que este papel sai revitalizado e que, ainda que o recurso à tecnologia possa aumentar, a dimensão pessoal regressará reforçada e na medida do possível.
Já o disse várias vezes. Não vai ficar tudo bem, seria uma ilusão defender isso. As vidas humanas que perdemos, e que já são mais de 1000, não se recuperam. O impacto humano, social, financeiro e económico do novo coronavírus está longe de ser conhecido, mas é certo que será grande e que demoraremos muito tempo a recuperar – pelo que é com alegria e alento renovado que vejo nascer este projeto do nosso estimado Miguel Mauritti, a quem desejo as maiores felicidades nesta nobre tarefa de contribuir para uma sociedade informada, distinguindo a verdadeira informação das falsas notícias.
Mas atravessamos esta crise com uma certeza: recuperando uma ideia de Darwin, não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças. Adaptação é, assim, uma condição basilar para a forma como lidámos com esta pandemia e como teremos de continuar a lidar com a (nova) normalidade que queremos, pouco a pouco, recuperar. Os portugueses sabem que podem sempre contar connosco e com a resiliência de quem, mesmo em situações únicas, continua a trabalhar dia e noite para que Portugal seja mesmo o milagre de que tanto se fala. Um milagre feito por pessoas: profissionais de saúde e cidadãos.
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