Luís Gouveia Andrade Médico Oftalmologista Grupo Lusíadas Saúde Director Geral da InfoCiência

A Medicina Não Pode ser Monotemática. O Mundo Também Não…

05/08/2020

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A Medicina Não Pode ser Monotemática. O Mundo Também Não…

08/05/2020 | Opinião

Quando um tema se sobrepõe a todos os outros, calando-os, abafando-os, tornando-os quase invisíveis e secundários, temos um problema. Aliás, temos vários.

Quando o Mundo se verga a uma doença, assumindo uma maior morbilidade e mortalidade associadas a outras, investindo recursos económicos e humanos desproporcionais que nunca parecerem existir num passado recente, alimentando um medo tóxico e paralisante que prende os doentes em casa, que os faz minimizar as suas queixas, que os faz esperar “a ver se passa” e os faz recusar consultas, tratamentos e cirurgias provavelmente mais relevantes, urgentes e inadiáveis, quando, finalmente, os doentes vêm as suas consultas, exames e cirurgias encarecidas pela realização de novos (e caros) testes prévios e pelo pagamento de equipamentos de protecção individual, e face a esse custo adicional, ficam de novo impedidos de avançar, estamos perante um cenário em que a realidade ultrapassa a ficção.

Podemos (e devemos) acrescentar a estes dados, o efeito arrasador da crise económica na qualidade de vida e, por inerência, na saúde das populações. Não só o emprego caiu e os rendimentos disponíveis encolheram, mas, por cima disso, a confiança colapsou e o modo como todos nos passámos a mover e relacionar se tornou deprimente, indiferente ou (pior ainda) desconfiado. Não nos tocamos, não nos vemos, afastamo-nos, censuramos quem não usa máscara, respiramos mal, temos pressa em sair dos locais públicos, não nos podemos demorar, não podemos contemplar, escolher, experimentar, o tempo, o afecto, a vida adquiriram formas, dimensões, cheiros e cores diferentes. Para pior. Para muito pior. Ir a um restaurante, espaço por excelência de escape, de convívio, de alegria, nestas condições? Não me parece. Voltar ao ginásio com hora marcada e sem balneários? Melhor treinar em casa…

A comunicação social explora o tema ad nauseum, imbuída pelo “dever de informar”.

Aos poucos regressa a actividade clínica presencial, com todas as limitações que se conhecem, com os custos acrescidos, com o receio sempre presente. E esta actividade, na qual o pilar da relação médico-doente é central e sagrado, vai ocorrer entre duas pessoas que mal se vêm.
Como comentário a um comentário de um colega (a repetição é intencional…) sobre o retomar dessa actividade clínica, escrevi: “Fica tanto de fora… o sorriso, o toque, o movimento dos lábios para os nossos doentes que ouvem mal, o abraço…

Para primeiras consultas ainda é mais tenebroso. Vou estar com doentes cujo rosto não conheço. Vou propor cirurgias e operar doentes que não viram o meu.

E isso, para mim, é central. O lado humano, afectivo, emocional, da Medicina fica diluído, escondido, oculto. Passarei por doentes na rua que não faço a mínima ideia quem são. E vice versa…

Sinto-me a léguas daquela que foi, até agora, a minha forma de exercer Clínica. Um exercício de proximidade, de confiança, de afecto.
Sem isso fica a técnica, eficaz mas fria, objectiva mas distante.

A minha esperança? O meu desejo? É que seja por pouco tempo. Porque tratar doentes que não vejo e que não me vêm é um lado da Medicina que nunca pensei conhecer. E que espero conseguir esquecer…”

Poderia ter sido diferente? Deveria ter sido diferente? Provavelmente, não. Algures neste processo, perdeu-se o controlo da gestão desta doença nas suas dimensões clínica, epidemiológica e económica e caminhou-se em (quase) uníssono numa mesma direcção: a do confinamento, a do protagonismo atribuído a esta doença, remetendo todas as outras para o papel de figurantes, a do sufoco das sociedades.

Falo com os meus colegas que referem a perda dos ganhos conquistados pela fisioterapia em doentes vítimas de acidente vascular cerebral ou trauma, penso nos meus doentes com glaucoma cuja pressão intra-ocular deixei de controlar, nas crianças com ambliopia, nos diabéticos com consultas adiadas, nos doentes oncológicos… a lista não tem fim…

Nenhuma balança conseguirá pesar o que lhe for colocado no final de tudo isto (quando?…) e determinar se valeu ou não a pena, se ficámos a perder ou a ganhar.

Nunca saberemos se outro tipo de caminho teria conseguido resultados iguais ou melhores. Nunca saberemos se uma intervenção precoce não se irá saldar em estatísticas finais mais pesadas, mais duras. Aqui não existem estudos clínicos aleatorizados e em dupla-ocultação que permitam comparar estratégias e fazer essa comparação com outros países nunca será válido.

Por isso, será importante nunca apontarmos o dedo no futuro e dizer: “se tivesse sido de outra maneira…”. Porque aí é fácil saber. Aí todos sabemos. Mas agora, neste momento, decidir é sempre difícil mas é sempre melhor do que não decidir, do que não fazer.

Porque escrevo então tudo isto? Por um lado, faço-o como catarse. Por outro, o mais relevante, para recordar, para reforçar, para GRITAR (!!!), que a Medicina é muito mais do que isto, que temos milhares de doentes sem tratamento, sem atendimento, barricados nos seus lares, por vontade própria ou “proibidos” pelos filhos (tantos me dizem isto..) de pôr o pé fora de casa. E importa perceber que, antes de tudo isto, já muitos doentes tinham dificuldade em pagar os seus tratamentos e que, se estes forem agora mais onerosos, será ainda mais difícil. Ou impossível.

O Mundo ficou suspenso, congelado, deixando de fora tanta gente e, sem o querer, matando ou adoecendo tantos de nós.

Repito, não estou a julgar mas a pedir que se mude de tema (sem esquecer, obviamente este), que se alargue a agenda da saúde e da economia dos Estados e que se viva sem medo, sem tanto ruído e abarcando, como tem de ser, todos os que, por uma razão ou por outra, têm ficado para trás, muitos, infelizmente, para sempre.

Um Medicina monotemática não é Medicina.

Um Mundo monotemático também não…

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