“Isto mudou totalmente”, confessou à agência Lusa Vera Dias, bombeira há 23 anos, os últimos três no quartel dos Bombeiros Voluntários da Ajuda, em Lisboa.
A pandemia da doença provocada pelo novo coronavírus alterou hábitos, rotinas e, no caso de Vera, obrigou a um longo distanciamento da família para poder continuar a socorrer os lisboetas sem o receio de contagiar a mãe.
“A minha mãe é doente oncológica e, desde que isto começou, em março, deixei de a ver. Só lhe telefono e a minha mãe tem os telefones antigos, porque a tecnologia para ela não dá […]. Há dias difíceis, há dias fáceis, vamo-nos habituando”, explicou a bombeira.
A situação de Vera não é caso único nesta corporação, como explicou a subchefe e coordenadora dos funcionários deste quartel, Liliana Ferreira.
“Tivemos colegas que deixaram de ir a casa. Faziam o turno de 72 horas e nós temos um espaço onde eles podem ficar a descansar as outras 72 horas, quando estão de folga, mas sempre sem irem a casa e sempre, no fundo, aqui, ao serviço da população e do socorro. Estão cá desde o início da pandemia”, sublinhou a responsável.
Contudo, as saudades apertam e, por vezes, os bombeiros pedem para dar um salto a casa, para ver as famílias, nem que seja ao longe.
“Acabam por ver os filhos pela janela, dão-lhes um beijinho e um alô”, prosseguiu Liliana Ferreira.
Os Bombeiros Voluntários da Ajuda estão na linha da frente do transporte dos chamados ‘doentes covid-19’ dentro da capital. A exposição ao novo coronavírus faz parte do quotidiano destes bombeiros.
“Inicialmente foi complicado […]. Confesso-lhe que, efetivamente, teve de haver aqui um trabalho psicológico porque não é fácil. O primeiro serviço é sempre o primeiro serviço e é complicado, há sempre aquela dúvida sobre se tudo corre bem, se eles [os bombeiros] estão bem equipados, se cumprem todas as regras de segurança”, considerou o comandante Fernando Azevedo.
A opinião do responsável é partilhada com Vera Dias, uma vez que “ninguém está preparado para estas epidemias” e há sempre “aquele nervosismo” cada vez que uma equipa vai responder a uma “situação de covid-19 ou suspeita”.
Contudo, este quartel estava preparado para a pandemia. Como diz o provérbio, ‘mais vale prevenir do que remediar’ e, por isso, os Bombeiros Voluntários da Ajuda adquiriram equipamentos de proteção individual no início.
“Comprámos algum equipamento para fazer face ao que seriam os primeiros covid-19 que teríamos de transportar e, em seguida, a Câmara Municipal de Lisboa também nos começou a fornecer equipamento”, explicitou a subchefe Liliana Ferreira, acrescentando que, até ao momento, não houve “nenhum tipo de carência” e “ninguém foi infetado”.
Os bombeiros desta unidade estão divididos por equipas que trabalham em turnos de 72 horas desde o início da pandemia e não há cruzamento para “não haver nenhum contacto” entre elas.
Também há sempre uma “equipa de reserva”, para, na eventualidade de um elemento que está de serviço ficar infetado, obrigando os restantes bombeiros a ficar em isolamento, nunca parar “o socorro à população”.
O transporte é feito com duas ambulâncias, que “são todas isoladas” e de onde foi retirado “tudo o que era material de socorro que as outras ambulâncias têm” a mais, uma vez que “o próprio material fica contaminado e é mais fácil para a descontaminação” se os veículos “tiverem o equipamento mínimo”, prosseguiu Liliana Ferreira.
Dentro das ambulâncias também foi instalado “um género de uma incubadora por cima da maca”, para não haver “qualquer tipo de contacto entre o doente e a tripulação”.
Já os bombeiros utilizam “aqueles fatos que quase parecem de astronautas, as máscaras, viseiras, óculos, levam ‘tapa pés’, levam luvas”. Cada vez que terminam “um serviço”, as ambulâncias são todas descontaminadas no Serviço Municipal de Proteção Civil de Lisboa, em Monsanto.
O bombeiro João Tiago – que acordou de uma breve sesta depois de um serviço que começou por volta da meia-noite e terminou às 05:00 – explicou aquele que passou a ser o procedimento diário depois de cada transporte de ‘doentes covid-19’.
“Deixamos o doente no hospital, contactamos o nosso elemento coordenador, que contacta o centro de descontaminação no parque de campismo, em Monsanto, e vamos lá fazer a descontaminação. Fazemos a descontaminação do veículo e da equipa, voltamos para o quartel e repomos todo o material que utilizámos”, referiu.
O volume de serviços, nomeadamente o transporte de pessoas que não estão infetadas pelo novo coronavírus, diminuiu consideravelmente porque “as pessoas têm receio de ir ao hospital”, realçou Vera Dias.
Contudo, surgiu um ‘novo tipo de serviço’: ser a companhia de quem está a viver sozinho. Porque, por vezes, os bombeiros são a única ferramenta para combater solidão.
“Há situações de pessoas que estão isoladas, derivado da pandemia, e sentem uma certa solidão. Por vezes, não têm com quem falar e, então, recorrem aos bombeiros. A gente chega lá e vê-se que a pessoa não tem nada, simplesmente quer desabafar, estar ali com uma companhia porque sabem que os bombeiros podem lá estar, embora a gente vá toda equipada”, explicitou o subchefe José Santos, considerando que estas situações aconteceram “algumas vezes” desde o início da pandemia.
As pessoas idosas são as que mais recorrem à companhia dos bombeiros, que substituíram os familiares, amigos e vizinhos, afastados pela pandemia que impõe o distanciamento físico.
“O saberem que está ali uma pessoa para conversar, nem que seja só [perguntarem] ‘olhe quer um chazinho?’, estas situações são muito boas para as pessoas idosas”, prosseguiu José Santos, o homem que mantém todos os veículos ‘afinados’, para que o socorro não falhe.
Durante a manhã em que a Lusa visitou este quartel, nem ‘doentes covid-19’, nem quaisquer outras ocorrências. Foi uma manhã calma, sinónimo de uma cidade que abrandou por causa da pandemia.
Pelas 13:30, o cheiro a batatas fritas já preenchia os espaços do quartel. Enquanto a próxima ocorrência não cai, há tempo para um almoço mais relaxado.
LUSA/HN
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