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Impacto da Distância “Social” Para os Mais Idosos
Não há muito tempo, e noutro local, me referi a duas das novas expressões fruto dos tempos estranhos em que vivemos: o “novo normal” e a “distância social”.
Sobre esta última escrevi então: “”A distância de segurança de 2 metros é apenas isso: uma distância entendida como segura para minimizar o contágio. Chamar-lhe “social” é um eufemismo sem nexo, quase como os “amigos” das redes sociais que nem conhecemos. Não se pode chamar amigo a quem nunca se viu ou com quem nunca se conviveu. E não se deveria chamar “social” a algo que visa precisamente reduzir o lado social das nossas vidas.””
Retomo agora este tema numa perspectiva mais abrangente, a dos terríveis, e ainda por mensurar, efeitos da pandemia no tecido social e afectivo, na solidão e no isolamento.
Uma pesquisa simples nas bases de dados identifica centenas de artigos dedicados à importância inegável do distanciamento como forma de reduzir o risco de contágio das doenças respiratórias infecciosa, sendo também já inúmeros os que se interessam pelo impacto desse distanciamento na solidão e na sensação de isolamento e, indirectamente, na saúde e no bem-estar.
Todos sabemos que a solidão é um factor de risco da maior importância para perturbações da saúde mental, como a depressão, ansiedade, ataques de pânico e ideação suicida.
E a evidência de que a ausência ou a fragilidade nas conexões sociais aumenta a mortalidade associada a eventos cardiovasculares, cerebrovasculares, por cancro, bem como a taxa global de mortalidade, é igualmente crescente.
Por outro lado, a solidão é particularmente, cruelmente, mais comum nos idosos, tendendo a aumentar em proporção directa com a idade. No caso português, dados recentes indicam que mais de 90% das pessoas com idade superior a 65 anos sentem algum grau de solidão, sendo essa solidão considerada grave num terço dos casos1. Considerando que, em Portugal, a população com idade superior a 65 anos é de cerca de 2.200.000 indivíduos, temos uma noção muito clara do que estamos a falar.
O “Censos Sénior 2017” e dados provenientes do Instituto Nacional de Estatística indicam que cerca de 1 milhão de idosos em Portugal se encontra em situação de solidão ou isolamento.
E, portanto, a uma população fisicamente mais debilitada, junta-se este factor de risco adicional que deriva do isolamento familiar e social a que tantos e tantos são sujeitos e que, para lá do impacto já referido na saúde mental, se associa a um declínio cognitivo mais acelerado.
É uma tempestade perfeita: o isolamento aumenta o risco de dificuldades físicas e mentais nos adultos idosos e essas dificuldades acentuam o risco de isolamento social.
Um interessante trabalho, no campo da Psicologia2, refere que a maior ameaça da idade avançada não é a idade cronológica em si mesma mas sim a associação próxima que existe entre a idade avançada e a presença de doença ou incapacidade. Ou seja, as pessoas menos saudáveis tendem a ser consideradas mais ineficazes e dependentes independentemente da sua idade cronológica e, por esse facto, as reacções são por regra mais negativas perante um idoso por se assumir que ele é mais ineficaz e dependente…
A situação actual é um enorme exemplo de tudo isto. Ao se assumir que as populações idosas são as que apresentam maior risco face à covid-19, vinca-se esse “rótulo”, reforça-se esse estigma e acabamos por infantilizar os nossos idosos, ao proibi-los de sair de casa, acentuamos o seu isolamento e aumentamos a sua exposição a outros riscos.
Se é verdade que a covid-19 corresponde a uma doença geriátrica importante, o distanciamento em relação aos amigos, vizinhos e familiares, embora importante para a sua protecção, limita o seu acesso aos cuidados de saúde e a outros recursos, aumenta a sua dependência e agrava a sua solidão.
Podemos admitir que o recurso à informática e à internet, com as videochamadas, reduz essa distância e essa solidão mas a ausência de contactos reais, de proximidade, de afecto, de calor humano nunca poderá ser compensada e os efeitos dessa ausência nunca deverão ser desvalorizados.
Alguns dados sugerem que, sendo esta pandemia uma ameaça para a saúde pública, o reforço dos estereotipos em relação à idade e a menor consideração pelos idosos podem ter contribuído para uma maior gravidade da presente situação porque se acentua o medo, se promove a distância e se erguem barreiras.
Será interessante num futuro próximo entender e medir o modo como esta pandemia acentuou a percepção da idade como uma fragilidade e como potenciou o já enorme isolamento dos idosos. Será curioso perceber se, daqui em diante, com base neste argumento da debilidade física deixamos ainda mais os idosos protegidos nas suas redomas que não deixam entrar nada. Nem doenças, nem pessoas.
Espero que não e que o medo que agora se vive, tão potenciado pelo ruído mediático, possa sucumbir abrindo espaço para uma vida normal.
Será igualmente importante avaliar o modo como a legislação se adapta, de modo a que medidas de flagrante desigualdade, como o dever de recolhimento forçado para idosos, se integram nas normas constitucionais…
No momento presente, as dificuldades que se colocam à população mais idosa foram tremendamente potenciadas pela pandemia. O reconhecimento dessa verdade será o primeiro passo para instituir medidas correctivas de apoio social e de solidariedade.
Os mais idosos de nós não podem, em nome da saúde pública ou da sua protecção individual imposta por terceiros perderem mais direitos, mais liberdade e, no fundo, mais saúde.
Nos moldes actuais, a distância de segurança está, no pior sentido, a funcionar como distância social.
Por isso me revolto com a expressão. Por isso apelo a que, numa luta difícil, não se deixe ninguém de fora. Sobretudo os que mais precisam. De saúde. De carinho. De companhia. De tudo.
1 https://www.sns.gov.pt/noticias/2019/07/22/estudo-impacto-da-solidao-em-idosos/
2 The Paradox of Social Distancing: Implications for Older Adults in the Context of COVID-19. Caitlin J. Tyrrell e col., 2020 American Psychological Association
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