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O Papel da Prescrição “Social” na Relação Médico-Doente. Nem Sempre os Medicamentos São o Melhor Remédio…
O erro parte tanto dos médicos como dos doentes.
O recurso aos medicamentos na abordagem aos problemas que trazem um paciente ao médico é de tal modo rotineiro que quase se tornou compulsivo, sob pena do paciente achar que o seu médico não se preocupou com ele porque não lhe receitou nada e, inversamente, o médico achar preferível receitar “algo” para que o seu doente sinta que valeu a pena a consulta.
Isto pode parecer bizarro mas quase todos já passámos por isso ou conhecemos alguém que passou.
Consequências desta prática? Custos acrescidos, efeitos secundários evitáveis, resultados insatisfatórios, mesmo considerando o tremendo efeito placebo que esta prática encerra.
Felizmente, o contrário também sucede e muitos pacientes nada mais desejam do que ter alguém que os escute, que os olhe nos olhos, que sorria, que os entenda e que transmita uma palavra de afecto, de apoio, de orientação. E essa abordagem é tão poderosa…
Todos os médicos estão bem cientes dos determinantes sociais da saúde e aprenderam os diversos modelos biopsicosociais que fundamentam a fisiopatologia de inúmeras condições clínicas. Mas, mesmo assim, esse conhecimento vai ficando encapsulado no tempo e raramente é integrado no momento de decidir qual o melhor tratamento para um doente. A receita clássica acaba, quase sempre, por vencer, mesmo quando não é, nem de perto nem de longe, o instrumento mais eficaz ou relevante…
O modelo de prescrição não farmacológica, em que aquilo que é oferecido aos pacientes se traduz em apoio emocional e/ou social, apresenta enormes vantagens:
• Menor utilização dos cuidados de saúde primários e secundários
• Menor recurso aos Serviços de Urgência
• Redução dos custos com medicamentos
• Redução da morbilidade/mortalidade associada à toxicidade medicamentosa
Ainda mais relevante, este tipo de abordagem permite que, tanto médicos como pacientes, se descentrem dos meios complementares de diagnóstico e dos fármacos como única panaceia para os problemas apresentados quando, na verdade, em nada adiantam e apenas confundem.
Na verdade, muitos pacientes procuram o seu médico expondo preocupações cuja génese não é médica mas deriva fortemente das suas circunstâncias sociais e económicas. E se o médico não tiver tempo, paciência ou sensibilidade para detectar essa origem, todo o processo ficará enviesado desde o início e o paciente não verá o seu problema resolvido. E, mesmo quando existe uma condição inequivocamente clínica, a prescrição social pode ser um complemento crucial do tratamento convencional.
A maioria das recomendações terapêuticas (guidelines) estão muito focadas na abordagem farmacológica. Demasiado focadas.
Definem-se fármacos de primeira linha, de segunda linha, combinações fixas, ajustes posológicos, monitorização terapêutica, mas abordam-se pouco as intervenções sobre o estilo de vida, a sua integração com os recursos disponíveis em cada comunidade e a importância de uma avaliação integrada de cada paciente, de cada pessoa.
O excesso de prescrição inadequada de antibióticos e de ansiolíticos/antidepressivos são apenas dois dos exemplos mais conhecidos de uma realidade que é transversal a todos os grupos de fármacos.
E, embora saibamos que o ambiente e os comportamentos individuais têm um impacto significativo na génese de diversas doenças, na sua progressão e na sua resposta ao tratamento convencional, acabamos quase sempre por não dedicar algum tempo a essa faceta da vida dos nossos pacientes.
E isso acontece por falta de tempo, pela pressão das consultas, pelo cansaço, pelo stress mas, sobretudo, pela nossa incapacidade de vermos para além da “ponta da caneta” e do formulário de medicamentos.
Para ser verdadeiramente eficaz, a prescrição social deveria contar com uma rede ampla e completa de profissionais e de organizações. Médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais a trabalharem em rede e suportados por estruturas comunitárias adequadas que possam fornecer actividades de lazer, formação, exercício físico, salas de leitura, entre tantos exemplos possíveis, formariam uma rede holística de cuidados onde cada paciente seria entendido como um todo e apoiado como tal.
É fácil? Claro que não, mas os recursos quase sempre já existem, de forma isolada e sem intercomunicação. O essencial seria, pois, criar uma rede que os interligasse e que oferecesse a todos este tipo de abordagem à saúde e à doença que integra cuidados médicos, de enfermagem e todo o apoio de carácter social.
É simples perceber o alcance dos benefícios deste tipo de abordagem. É intuitivo captar os ganhos em saúde, qualidade de vida e anos de vida. Mas não é fácil implementar…
Existirão sempre pacientes com condições puramente médicas e puramente sociais mas o grupo maior será sempre aquele em que ambos os factores coexistem. Nesse sentido, o recurso à prescrição social permitirá aos médicos o acesso a formas de intervenção que reduzam o número de prescrições desnecessárias e potencialmente nocivas e, em simultâneo, que encoraje os pacientes a serem mais responsáveis pela sua saúde em vez de delegarem essa função em exclusivo no seu médico.
Por outro lado, a prescrição social é menos individual porque não se foca apenas naquele doente mas acaba por envolver a sua família, grupos de doentes e outros elementos da comunidade. E isso é muito bom.
Estando estas redes bem organizadas, outro benefício colateral é a redução nas desigualdades de acesso aos serviços de saúde e aos medicamentos.
Naturalmente, este tipo de medidas implicará também da parte dos profissionais da saúde uma mudança no paradigma da sua actividade e a capacidade de aprender e de reconhecer quais as intervenções disponíveis e quais as que melhor se adaptam a cada paciente.
Tudo o que aqui escrevo é exequível. Mas implica trabalho e, sobretudo, vontade de mudar.
Vale a pena? Não tenho dúvidas. Na nossa experiência todos vemos o efeito incrível da receita não médica. Aqui, trata-se de transpor essa experiência individual para o plano da comunidade e os resultados nunca poderão ser menos do que extraordinários.
Que o tempo um dia me dê razão…
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