Fátima Palma (APF): “Julgo que nunca existirá o contracetivo ideal”: Dia Mundial da Contraceção e 60 anos de pílula

09/26/2020
As pessoas têm muito a noção de que a pílula pode fazer engordar e alterar a fertilidade, provocar cancro da mama, mas estes são alguns mitos infundados

Celebra-se este sábado, 26 de setembro, o dia Mundial da Contraceção no ano que assinala os 60 anos de pílula. O medicamento revolucionou a vida das mulheres e o planeamento familiar e, por isso mesmo, interessa agora saber o que mudou ao longo destes 60 anos. Qual o principal método contracetivo utilizado em Portugal, que alternativas existem, como evoluiu a pílula e quais os mitos que lhe estão associados? E para os homens, quais as opções? São algumas das perguntas respondidas nesta entrevista pela Dra. Fátima Palma, presidente da Sociedade Portuguesa de Contraceção.

 Healthnews.pt (HN) – A pilula parece ser o contracetivo mais utilizado. Porquê?

Fátima Palma (FP) – A pílula é o método contracetivo mais utilizado em Portugal, mas não no mundo inteiro. As portuguesas sempre foram muito boas utilizadoras de contraceção hormonal combinada, se bem que na última avaliação feita às mulheres portuguesas, em 2015, houve um decréscimo de cerca de 10% de utilizadoras da pílula a favor de outros métodos contracetivos – os chamados métodos contracetivos de longa duração. Os números destes contracetivos subiram um pouco, sobretudo do Dispositivo Intrauterino (DIU), quer os de cobre ou com libertação de levonorgestrel.

Portugal sempre foi um bom utilizador da pílula, e as portuguesas desde cedo que se habituaram a utilizar a pílula, daí que sejamos o país da Europa em que a pílula é mais utilizada. No fundo tem tudo que ver com perfis de contração de utilização de contraceção que são diferentes de país para país. Por exemplo, em Espanha as mulheres usam muito o anel vaginal e o preservativo masculino. Nos países nórdicos as mulheres utilizam muito a contraceção de longa duração, nomeadamente o DIU. Portanto, de país para país existem algumas diferenças na utilização da contraceção.

HN- E qual é a vantagem da pílula em relação aos restantes métodos contracetivos, do ponto de vista médico, para que em Portugal seja o mais utilizado?

FP – Não sei se isto se pode colocar nestes termos… Existem algumas vantagens agora nos métodos de longa duração, porque aqui as mulheres não precisam de estar dependentes da sua lembrança para os tomarem. Daí, eles acabam por ser mais eficazes e ter uma taxa de utilização ao final de um ano superior à da pílula, que depende da toma diária. Portanto, estes métodos de longa duração têm, obviamente, mais vantagens para as mulheres.

Agora, julgo que é tudo uma questão de hábito e conhecimento. As mulheres portuguesas, a maioria, sente-se mais confortável em utilizar uma coisa que já conhece.

HN- Existem efeitos secundários adversos da pílula, ou ouvimos demasiados mitos e a pílula é realmente segura?

FP – Todos os medicamentos têm efeitos secundários – todos. Aquilo que podemos dizer é que, por vezes confundem-se os efeitos secundários da pílula, que numa mulher saudável e sem doenças são perfeitamente desprezíveis porque não são importantes, com alguns mitos que se criam em relação à contraceção hormonal combinada, como é o caso da pílula. As pessoas têm muito a noção de que a pílula pode fazer engordar e alterar a fertilidade, provocar cancro da mama, mas estes são alguns mitos infundados. As pílulas que surgiram há 60 anos, celebra-se mesmo este ano os 60 anos do aparecimento da pílula contracetiva, tinham dosagens hormonais, quer de estrogénios quer de progesterona muito superiores àquelas que temos hoje em dia. Por isso, aquelas pílulas tinham alguns efeitos adversos importantes que já não existem.

Claro que isso não significa que todas as mulheres possam tomar a pílula, ou que possam ir à farmácia e comprar a mesma pílula da vizinha do lado, ou da amiga. Mas, de uma forma geral, uma mulher saudável pode tomar a pílula desde que queira começar até entrar na menopausa, sem efeitos adversos. Também se verificou que as mulheres que utilizam contraceção hormonal combinada, como é o caso da pílula, têm uma longevidade maior e estão protegidas, em contrário a alguns mitos, de alguns cancros, nomeadamente o cancro do cólon, cólon-retal, do ovário… Existem algumas proteções associadas ao uso da pílula. Estas mulheres também têm menos anemia e menos dor durante o período menstrual…

Existem uma série de benefícios secundários ao uso da pílula que também podem ser importantes para muitas mulheres. Aliás, há muitas mulheres que utilizam a pílula devido aos seus efeitos acessórios não-contracetivos, ou não só como método contracetivo. Um grupo importante de mulheres, cerca de um terço das mulheres em todo o mundo – segundo alguns estudos -, utiliza a pílula pelos seus benefícios extracontracetivos, como costumamos dizer.

HN- Porque é que existem tantas opções contracetivas para as mulheres, mas os homens estão cingidos ao preservativo e à vasectomia?

FP – É mais fácil controlar a ovulação feminina porque é um acontecimento isolado. As mulheres libertam um óvulo por mês, por oposição à produção de milhões de espermatozoides. Tem que ver com a parte fisiológica. Tem sido muito difícil arranjar uma contraceção hormonal sem efeitos adversos importantes para o homem.

Existe a nível europeu um consórcio sobre a contraceção masculina e a investigação nesta área, e tem sido muito difícil de alcançar resultados. Portanto, só surgiram alguns produtos ejetáveis, mas até agora não se conseguiu arranjar nada com as mesmas qualidades e eficácia da pílula feminina.

Portanto, para os homens existe essencialmente a vasectomia, o preservativo e o coito interrompido, se o quisermos considerar num método que tem sido utilizado desde sempre. Sendo que a vasectomia, um método de contraceção definitiva, é muito mais fácil de executar que a esterilização feminina.

O que acontece é que desde que se percebeu como é que se podia bloquear a ovulação das mulheres houve um grande desenvolvimento. Repare que estivemos até 1960 para descobrir a pílula, porque não havia nenhum método de contraceção feminina, e nos últimos 60 anos apareceram toda esta quantidade de métodos. E isso é ótimo, ao contrário do que algumas pessoas possam pensar. Porque a contraceção é uma coisa que, como já disse, não pode ser a que a amiga faz; ela deve ser individualizada caso a caso. Cada mulher tem as suas caraterísticas, ideais de vida, forma de estar e ciclo de vida, e mesmo dentro do ciclo de vida as opções podem ir mudando ao longo da vida. Portanto, é ótimo que uma mulher consiga individualizar a contraceção e fazer o aconselhamento correto.

É aí que a contraceção masculina  se torna mais do que no preservativo e na vasectomia. O outro membro do casal deve ser envolvido nestas questões de decisão de contraceção da sua parceira. Porque se isto acontecer, a adesão (“compliance”) ao método e a sua continuação vão ser muito melhores.

HN- Estávamos a falar que a primeira pílula apareceu há 60 anos. Que desenvolvimentos teve o medicamento desde então?

FP – Na altura criou-se uma pílula formada por estrogénios e progesterona com umas dosagens completamente diferentes das de agora. A partir daí a tendência tem sido fazer compostos com menos doses destas hormonas, e foram aparecendo diferentes tipos de moléculas devido à evolução científica.

Aquilo que se pretende é obter sempre o mesmo efeito contracetivo com a menor dosagem hormonal possível para garantir a qualidade dos efeitos acessórios, e por isso, foram aparecendo compostos cada vez mais específicos.

Por outro lado, era também importante aparecerem mais contracetivos porque nem todas as mulheres podem tomar estrogénios e progesterona – os constituintes base da pílula. Há mulheres que, por razões de saúde, não podem toar estrogénio. Então foram aparecendo pílulas só com progesterona, porque sabe-se que é esta a hormona que impede a ovulação. Isso foi outro marco importante, porque abriu o leque a mulheres com doenças como a hipertensão ou grandes fumadoras.

Finalmente apareceram estes métodos fantásticos que permitem que se tenha contraceção a 3, a 7 ou a 10 anos, com os dispositivos de cobre, sem as pessoas terem que se lembrar de tomar um comprimido todos os dias. Foi uma grande modificação do perfil que pode ir ao encontro de outro tipo de mulheres, com uma vida mais ativa, que mudam de fuso-horário e que estão muito mais libertas para a sua sexualidade.

HN- E por onde passa o futuro da contraceção?

FP – Eu julgo que a contraceção hormonal para os homens vai continuar a ser difícil. Precisamente pela parte da fisiologia. Mas é uma questão a ponderar e continua a haver grande investigação nessa área.

Não existe um método contracetivo ideal e julgo que não existira, porque o contracetivo ideal para uma pessoa pode não o ser para outra. Estes métodos de longa duração trouxeram a vantagem de serem extremamente práticos. Acho que seria importante aliar às caraterísticas destes métodos a capacidade de haver uma prevenção das infeções de transmissão sexual. Porque neste momento, se quisermos proteger das infeções de transmissão sexual e da gravidez com a maior segurança teremos sempre que utilizar dois métodos. Penso que o ideal seria haver um método extremamente eficaz na prevenção da gravidez, que não fosse de utilização diária, e que ao mesmo tempo prevenisse em relação às infeções de transmissão sexual. Isso seria o método quase perfeito, e julgo que vamos lá chegar. É pela junção destas caraterísticas que vamos lá chegar.

HN- Para concluir, existe alguma mensagem que valha a pena passar relativamente ao período de pandemia que vivemos e à contraceção?

FP – Queria só pedir aos meus colegas profissionais de saúde que assegurem às suas utentes a contraceção. Mesmo que não consigam levantar as suas pílulas nas unidades de planeamento familiar, elas devem entrar em contacto com o seu centro de saúde ou dirigir-se à farmácia para simplesmente não deixarem de tomar.

Atingimos tantas coisas ao longo destes 60 anos e a pílula foi um dos grandes contributos para a diminuição da mortalidade materna e para a melhoria de muitas outras taxas, que agora seria muito triste perder todos estes avanços com os maus desfechos que nos trouxe a pandemia.

O alerta importante é que os colegas que trabalhem na área da ginecologia e no planeamento familiar, nomeadamente os médicos de medicina geral e familiar, que tentem organizar-se de forma a permitir que as suas utentes continuem a fazer contraceção, se assim o desejarem.

Entrevista de João Ruas Marques

 

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