Em 2018 fez também um doutoramento que terminou com uma tese sobre a qualidade de vida em pessoas com SIDA na cidade de Lisboa. Segundo ela, os apoios prestados ao longo dos últimos 30 anos são os mesmos, “nem melhores, nem piores”. O que falta a estas pessoas é o apoio psicológico e psicossocial, para que aprendam a viver com a doença e com as consequências extrafísicas da mesma. Hoje, para estes doentes a única coisa que mudou foi “o medo da morte”.
HealthNews (HN) – A Ana trabalhou 30 anos na Casa Amarela, mas não era suposto. O que é que a levou a tornar um trabalho que seria, em princípio, temporário, numa missão que cumpre até hoje?
Ana Campos Reis (ACR) – Na altura, os funcionários da Santa Casa da Misericórdia achavam mesmo que este trabalho era uma missão. Eu não me desliguei desse aspeto e tentei que estas pessoas fossem mais felizes.
Acontece que tivemos algumas dificuldades no início. A Câmara Municipal deu a casa, e era esse o seu papel, para além de outras pequenas ajudas. De qualquer maneira, a Cruz Vermelha nunca se chegou à frente, talvez por falta de voluntários, e tivemos que arranjar uma resposta diferente. Eram os próprios voluntários que ajudavam nas tarefas da casa como a roupa, a cozinha, o jardim e um outro aspeto de extrema importância: visitar os colegas hospitalizados, como se fossem uma família.
Desde o primeiro dia percebi que esses aspetos eram importantes para a sobrevivência com esta patologia.
Cada vez havia mais pessoas; atendi cerca de 4.000 ao longo dos anos. E sempre acreditei que iriamos ter medicação que tornasse a infeção por VIH uma doença crónica. Acreditei nisso desde o primeiro momento.
Fui tentando, com a autorização da instituição, criar respostas de acordo com as oportunidades que iam aparecendo. A ideia era que as pessoas que recorriam a nós pudessem estudar, ter um emprego ou uma casa. Isso aconteceu com alguns, mas apenas com muito esforço. Porque na sociedade, normalmente as pessoas apresentam sempre com grandes soluções, mas na prática é difícil.
Para conseguir uma casa para um casal de homossexuais que esteve no serviço desde início, levámos 15 anos… As respostas vão aparecendo, sempre muito bonitas e cheias de boas intenções, mas basta mudar o Governo e volta-se outra vez à estaca zero.
Hoje em dia, algumas destas pessoas ainda me telefonam, e chegaram-me a apresentar os namorados e os filhos, e mostravam-me as notas das crianças. Agora, anos mais tarde, quando alguém morre telefonam-me sempre para ir ao funeral.
A ligação ficou. Quem dá amor, recebe amor.
HN – A Casa Amarela era, imagino eu, muito procurada. Havia mais procura do que aquela a que os meios permitiam responder?
ACR – Claro que sim. A Casa Amarela tinha 10 camas e rapidamente tínhamos 50 pessoas a recorrerem ao refeitório para todas as refeições do dia. Mas nunca me lembro de negar apoio a ninguém, a não ser que fossem de localidades fora do âmbito da Misericórdia. Desde que a pessoa estivesse num hospital de Lisboa e o pedido fosse feito pelos serviços sociais dos hospitais, não me lembro de alguém ter ficado sem resposta.
Quando as pessoas não tinham cama na Casa Amarela, os próprios serviços da instituição atendiam a pessoa, criavam um plano de apoio e eram postos em apartamentos com outras pessoas. À Casa Amarela vinham tomar a medicação, vinham comer e tratar das suas roupas. Era a casa mãe, dali partiam as outras respostas.
Acontece que a maioria das pessoas pediam um internamento, mas depois de as conhecermos, algumas delas, constatávamos que não tinham essa necessidade. O que não quer dizer que não precisassem de ajuda e ficassem sem resposta no apoio à medicação, ou no acompanhamento terapêutico. Tínhamos uma unidade de toma observada em que os enfermeiros davam o comprimido e o copo de água, e certificavam-se de que os doentes tomavam o medicamento.
À partida, os utentes sabiam qual era a finalidade do serviço e, se aceitassem ser tratados ali, havia um plano terapêutico muito rígido de maneira a que cumprissem rigorosamente a sua medicação. E tenho a certeza de que isto foi algo benéfico na vida da grande maioria destas pessoas.
HN – A Ana escreveu uma tese de doutoramento sobre a qualidade de vida dos doentes com VIH/SIDA. Foram inquiridas 150 pessoas, mais de metade eram não ativas (25% do total era mesmo desempregada), 60% eram homens, 60% eram solteiras, quase todas com pouca escolaridade, com uma idade média de ambos os géneros a rondar os 50 anos. Isto é um espelho da população infetada hoje, em Portugal?
ACR – Esta não é a população da infeção em Portugal, mas uma amostra muito rigorosa da população que pede ajuda à Misericórdia. São mais homens, pessoas sós, com pouca escolaridade e sem emprego – porque se o tivessem, mesmo que recebessem o rendimento mínimo, já não eram “clientes de excelência” da misericórdia. E há algumas coisas em comum com a população do resto do país.
Qualquer pessoa, em qualquer zona do país, se vivesse só do rendimento do seu trabalho e ficasse meses internado com uma tuberculose, perderia o emprego e tornar-se-ia dependente de familiares ou de instituições. Portanto, no fundo, isto é uma amostra do que a patologia fez a algumas pessoas no início da pandemia de VIH. Muitas pessoas acabaram por encaixar nestas estatísticas por causa da pandemia.
Com a chegada da medicação que tornou o VIH/SIDA uma doença crónica, as pessoas passaram a ficar condicionadas não a uma doença crónica, mas por vezes a duas ou três.
Hoje em dia, os casos são menos, embora eu acredite que haja muita subnotificação e, quando se diz que se morre menos com SIDA, é porque na verdade morre-se mais com outras doenças como a diabetes ou doenças cardiovasculares – pessoas que estão imunodeprimidas.
Mas num outro estudo que fiz, qualitativo e que abrangeu só 10 pessoas, foi verificado que a maioria tinha o 12º ano. Algumas destas pessoas passaram por instituições em crianças, como a Casa Pia, mas nota-se alguma diferença. Muitos deles vivem em união de facto e são quase todos reformados, com uma maior escolaridade. Porquê? Porque estão a ser apoiados há mais tempo e desenvolveram outras capacidades.
Entretanto, quanto à população de infetados, há muito tempo que se deixou de falar de grupos de risco. Quem corria o risco de ficar infetado era quem tinha tido comportamentos de risco. Agora, tudo depende da rede social que tem de apoio, do efeito da própria medicação, que é “pesada” e pode conduzir a outras patologias.
HN – Comparativamente com quando chegou há Casa Amarela, hoje, quais são as principais necessidades para os doentes com VIH/SIDA? Estas necessidades mudaram?
ACR – A resposta mais importante foi o próprio avanço científico e a medicação que entretanto apareceu. De qualquer maneira, quando estudamos um grupo de pessoas, vamos sempre deparar-nos com a necessidade de apoio psicológico.
O apoio psicossocial é extraordinariamente importante para as pessoas manterem a sua doença crónica. Isso vai-se diluindo e as pessoas com doença cardíaca têm problemas, as pessoas com doença respiratória têm problemas e as pessoas com SIDA também terão problemas, naturalmente. Isto se as respostas não forem globais, porque uma coisa é a resposta médica clínica e meramente terapêutica; outra coisa é a vida da pessoa num todo: contando com a sua autoestima, a sua resiliência, a sua espiritualidade… Pouca gente fala nos valores que fazem a diferença na felicidade de uma pessoa. Fatores muito importantes, e que são essencialmente psicossociais, não são tão estudados como o aspeto clínico destas doenças.
HN – Estas preocupações com estes valores e estas questões psicossociais são de agora, ou já existiam há 30 anos?
ACR – Foram sempre preocupações que surgiram, mas muito pouco desenvolvidas porque o médico e o enfermeiro são obrigatórios nas unidades de saúde, mas se só houver um psicólogo para a unidade inteira, então o apoio é nulo… As pessoas recorrem depois a medicinas alternativas para terem quem lhes dê atenção quanto ao seu universo interior.
HN – Era o isso que acontecia com alguns dos utentes da Casa Amarela?
ACR – Sim. Os três aspetos mais importantes da autoavaliação para a qualidade de vida destes utentes são: o transporte; a espiritualidade, a que chamam a fé, esperança, os medos e as crenças; e o apoio psicológico. São estas as grandes necessidades que identificam.
HN – E que tipo de apoios sociais existem hoje que não existiam há 30 anos?
ACR – Os apoios hoje não são maiores, nem melhores. Penso é que o medo se diluiu um pouco porque talvez não haja tanta discriminação e tanto estigma. O que quero dizer não é que ele tenha deixado de existir, mas sim que hoje não é politicamente correto as pessoas assumirem deliberadamente uma postura discriminatória.
O medo da própria de pessoa ter pouco tempo de vida, de já não conseguir e não ir a tempo é que se diluiu. As pessoas agora conseguem esperar por um apoio. Por exemplo, um doente que precisasse de apoio há 30 anos começava a gritar e a partir tudo, porque este medo era o medo da morte. Agora se a pessoa estiver no médico, se tiver a sua medicação e uma marcação para daqui a seis meses fica preocupado, mas não parte nada.
A realidade já é outra. Foi o medo da morte que se modificou, e não os apoios.
Os serviços de saúde funcionam de forma igual para todos e têm as suas lacunas. Os apoios sociais têm a sua resposta mais ou menos normalizada, e quanto maior a procura a nível global, maior a lista de espera. Os apoios psicológicos, quem não os conseguir pagar no privado, fica sujeito às respostas pontuais dos serviços públicos, que não são sistemáticas.
Na altura fazíamos um grande esforço para que os doentes com SIDA tivessem as mesmas respostas que os outros. Só que as respostas para os outros, provavelmente, continuam a ter lacunas, e os doentes com SIDA hoje, felizmente, já só sofrem dessas lacunas. O objetivo da minha equipa era que estes doentes tivessem as respostas a que os outros tinham direito. Havia resposta para mulheres com crianças e para idosos, mas não havia resposta para jovens doentes.
E o que é que podia ser feito para preencher estas lacunas?
AFC: O que eu espero é que os técnicos de saúde tenham tempo físico e interior para saber ouvir os outros. Há que perceber qual é a necessidade da pessoa que está a pedir apoio. Não é a resposta de pacote que interessa, mas sim saber ouvir o outro. Quantas vezes, no atendimento, se o paciente se sentisse confortável para falar não pediria coisas completamente diferentes?
Há que saber ouvir e atender a pessoa como pessoa, e não triparti-la: o médico trata do físico, o psicólogo da mente e a assistente social do subsídio… A intervenção deve ser holística.
Entrevista de João Marques
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