Eng.º Alexandre Guedes da Silva fala sobre Esclerose Múltipla: “A montanha de burocracia não deixa o doente ser o centro do sistema”

4 de Dezembro 2020

Tive oportunidade de falar com elementos do grupo de trabalho do Infarmed e de lhes explicar que, por exemplo, há doentes que temem ser prejudicados a nível profissional se os virem ir levantar a medicação ao hospital. A única forma de conseguirmos que essas pessoas se tratem é garantindo o seu anonimato, a que têm todo o direito

“Mover a montanha” é o lema do congresso da SPEM que hoje se inicia. Na opinião do presidente, Alexandre Guedes da Silva, a “montanha” da burocracia do sistema de saúde criou 0uma verdadeira teia de desigualdades regionais e locais. A tecnologia poderá, no entanto, ajudar a desmontá-la.

HealthNews (HN) – Este ano, o lema do congresso da SPEM, com início no Dia Nacional da Pessoa com Esclerose Múltipla, tem o mote “Saúde 4.0 – Mover a Montanha”. Refere-se à “montanha” de burocracia que não deixa o doente ocupar o centro do sistema?
Engº Alexandre Guedes da Silva (AGS) – No nosso congresso vamos procurar responder de que forma poderemos atingir esse desejo, expresso há tantos anos, mas inatingível porque a “máquina” burocrática é tão pesada e inamovível que parece uma montanha.

De facto, a “montanha” impede que o doente seja o centro da atenção do sistema nacional de saúde, que naturalmente inclui o SNS e o setor privado.

HN – A integração de cuidados continua a ser o grande problema?
AGS – Um doente complexo, como é o doente com esclerose múltipla, necessita de uma resposta integrada. Não pode haver respostas a velocidades diferentes, com atores que não falam uns com os outros e sistemas informáticos que não comunicam entre si.

No nosso congresso pretendemos destacar o grande impacto da integração de dados, da Inteligência Artificial e dos sistemas digitais, em geral, e de que forma podem ajudar na materialização dessa mudança.

A desintegração de cuidados aconteceu porque o sistema físico, analógico, não permite vencer barreiras e ter todos os serviços integrados no mesmo local.

Os Centros Integrados de Esclerose Múltipla que já existem nalguns países mas que para nós, continuam a ser um sonho. Gostaríamos que, no espaço digital, esta integração fosse não só possível como sustentável.

Temos a noção que, se for realizada segundo o modelo analógico, pode ser demasiado onerosa para o Estado, o que não acontecerá se aliar o baixo custo do digital à qualidade do analógico, ou seja, dos nossos profissionais, que são fantásticos.

Infelizmente, porque nada está organizado para potenciar aquilo que de fantástico são capazes de fazer, acabamos por ter um serviço apenas sofrível.

HN – A pandemia trouxe um novo olhar sobre as potencialidades da tecnologia no apoio aos doentes?
AGS – A pandemia obrigou-nos a arranjar rapidamente uma solução. Tecnologias já utilizadas há mais de 15 anos, como a videoconferência (o Skype foi lançado em 2003), instalaram-se de forma perene e já não vão voltar para trás.

Penso que a adoção plena do digital pela sociedade, vai ser vantajosa no futuro para o cuidado das pessoas com doença crónica.

HN – A SPEM recebeu a Menção Honrosa na última edição do “Prémio Saúde Sustentável” pelos projetos “EM´Casa mas ativos”; “EM´Casa Tranquilamente” e “EM´Casa Mais informados”. De que forma as tecnologias digitais moldaram a resposta da SPEM durante a pandemia?
AGS – No início da pandemia tivemos que fechar as portas de um dia para o outro e reinventar toda a nossa atividade em 15 dias. Muitos serviços prestados nas várias sedes tiveram que encerrar. Continuamos a levar refeições, a prestar apoio domiciliário e mantivemos o serviço de fisioterapia ao domicílio às pessoas que já acompanhávamos, mas todas as outras atividades, que eram realizadas nas várias sedes, tiveram que passar para o domínio digital durante o período mais crítico da pandemia.

Lançamos a iniciativa “EM´Casa” para abrir espaço a essa intervenção. Já tínhamos feito experiências na área da Psicologia mas não na área da Terapia Ocupacional, Terapia da Fala, Fisioterapia ou na área Social, com consultas e sessões on-line com a equipa social.

Foi um enorme desafio, um período de grande aprendizagem e também de criatividade fora do comum.

HN – Muitos doentes também tiveram que aprender a utilizar as novas tecnologias?
AGS –
Tivemos que capacitar os doentes e nalguns casos, os seus cuidadores. Arranjamos equipamentos e, quando não tinham, criámos condições para poderem aceder à banda larga. Aliás, continuamos a trabalhar, diariamente, para aumentar a literacia digital das pessoas que se juntaram a nós nos últimos meses.

Tem sido muito bom sentirmos que as pessoas estão agradecidas e sentem que estamos a fazer algo por elas. O reconhecimento dos nossos pares é a melhor recompensa que podemos receber.

HN – Existem cerca de 8.500 doentes com esclerose múltipla em todo o país. Qual é o ponto de situação relativamente às oportunidades de acesso aos cuidados de saúde nos diversos pontos do país?
AGS – No nosso país, o acesso é totalmente desigual. Entre o Interior e o Litoral; entre os mais abonados e os menos abonados; entre os funcionários públicos e os trabalhadores do setor privado… É diabólico como num país democrático, que se orgulha do seu SNS, criamos uma verdadeira teia de desigualdades regionais, locais e laborais.

Todos aqueles que têm possibilidades económicas, meios de transporte e apoio familiar, fugiram dos hospitais regionais para os grandes centros hospitalares, onde têm acesso a terapêuticas inovadoras.

Infelizmente, são os mais vulneráveis, os mais pobres, os menos educados e os mais humildes, que ficam de fora.

HN – Qual é a sua opinião sobre o relatório do Grupo de Trabalho do Infarmed criado para estudar a a dispensa de proximidade de medicamentos hospitalares?
AGS – Quando não se quer decidir, cria-se um grupo de trabalho que depois “se embrulha nos pormenores” e acaba por parir um “nado morto”. Este grupo de trabalho não é muito diferente dos outros. Aponta para soluções, muitas das quais pouco ou nada exequíveis, e deixa no ar uma série de travões para garantir que aquilo é aplicado a… zero pessoas!

Tive oportunidade de falar com elementos do grupo de trabalho do Infarmed e de lhes explicar que, por exemplo, há doentes que temem ser prejudicados a nível profissional se os virem ir levantar a medicação ao hospital. A única forma de conseguirmos que essas pessoas se tratem é garantindo o seu anonimato, a que têm todo o direito.

Por outro lado, não podemos, por uma questão de conveniência dos serviços ou dos senhores dirigentes, criar ónus e despesa na pessoa doente e com necessidades que, muitas vezes, tem que faltar ao trabalho para percorrer muitos quilómetros até ao hospital.

Explicamos-lhes coisas tão evidentes … mas não serviu de nada! Contudo, nós não temos que alimentar a máquina; a máquina é que tem que nos servir. E é bom que isso fique claro!

 

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