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Raquialgias: manifesto filosófico-fisioterapêutico
As raquialgias constituem a condição sintomática mais comum no atendimento fisioterapêutico, bem como uma das mais habituais da consulta ortopédica, reumatológica ou de clínica geral. Elas não se resumem a um quadro simples perspectivável de modo unívoco, compõem, sim, a fonte de um enquadramento paradigmático que reflecte a divisão epistémica, valorativa e pragmática de avaliação e intervenção clínica, fisioterapêutica e/ou médica. Neste contexto, reflectir a acção clínica presente perante a raquialgia é, igualmente, especular uma derivação filosófica sem a qual a intervenção não pode pressentir-se e valorizar-se. No limite, diremos que existe uma relação estreita e bi-direccional entre filosofia e clínica que é cada vez mais conveniente escalpelizar.
Dois modelos/paradigmas expressam a dualidade do tracto da raquialgia, o próprio ráquis os separa em:
(1) modelo postural, que implica um tratamento operado, essencialmente, em decúbito dorsal, posição base a partir da qual é fácil perspectivar as compensações que são geradas aquando do alongamento da cadeia muscular posterior. Esta cadeia integra um complexo de músculos muito tónicos e resistentes, com uma função fundamentalmente postural. A sua contracção tem, segundo o paradigma, a potencialidade de achatar as articulações e de cerzir a morfologia.
O esquema básico de Mézières 1 releva o seguinte conjunto de alterações: lordose, rotação interna (dos membros) e bloqueio diafragmático em inspiração. Considera-se, também, que a lordose lombar pode propiciar o desgaste da articulação da anca, tal como pode aumentar o nível de lordose cervical, implicando uma cifose “aparente”. A cifose dorsal poderá aumentar o nível de desgaste da articulação do ombro, estando, acaso, associada, igualmente, à retracção da musculatura rotadora interna dos membros superiores. Por outro lado, grande flexibilidade da secção superior da cadeia muscular posterior (correspondente à coluna) pode ser compensada com “lordose” da secção inferior, provavelmente popliteia. Estas alterações são francamente compensatórias, podendo estender a “normalidade” postural até limites potencialmente nefastos. Geralmente, o limite, adoptado como a incapacidade do corpo de compensar mais, é represado pela “dor” e/ou deformidade.
O tratamento “postural” é, primariamente, representado pelo trabalho de flexibilidade miofascial, preferencialmente “global”. É ele que permitirá aumentar aqueles limites, libertando, potencialmente, as articulações. Bienfait 2 assume que o trabalho de flexibilidade na escoliose mais acentuada poderá ter o efeito de aumentar ainda mais a deformidade. Mas, por exemplo, Souchard 3 concebe que tal só poderá suceder se não existir um modo adequado de controlar todas as compensações, coisa que o seu método (RPG) propende face ao original de Mézières.
A perspectiva “compensatória” é, na realidade, um modo de confiança no equipamento “observacional”, ao estilo de Francis Bacon 4, mas que não escusa os defeitos empíricos que o mesmo filósofo aponta aos modelos dogmáticos. O que é observado e assumido como lei é francamente movido por um comportamento corpóreo, que mesmo sendo assumível como universal, não dispensa a visão paradigmática. O que inclui a mesma óptica a posteriori, aquando da efectivação de um modelo “miofascial” que sugestiona simultaneamente a avaliação e o tratamento. Avocar que este modelo permite esculpir uma morfologia é, talvez, especular o que o intrínseco modelo entende não poder ser comprovado por défice de tempo de estudo e por incapacidade de controlo de variáveis nesse mesmo tempo delongado. Por sua vez, é possível conceber que a resultante vera em alguns sujeitos poderia ser apagada por uma “não resultante” em outros sujeitos, isto se nos referirmos a estudos “grupais”, que, consabidamente, cancelam o efeito “casuístico” e não permitem, muitas vezes, estudar a inter-relação de variáveis. Mas acontece que a mesma táctica “desculpabilizadora” é utilizada por proponentes de outros métodos com elevados níveis de abstracção, o que pode envolver a pura charlatanice. Daí que, ainda mais quando se trata da mera sintomatologia, seja fundamental acrescer o “efeito placebo”, o qual tende a ser demonizado pelo positivismo.
Há, ainda, que ater a problemática anamnésica e dialéctica. O paradigma “postural” convida à intervenção constantemente dialógica entre o terapeuta e o que o corpo do paciente “narra”. Mas como pejar a cronologia das alterações, se houve uma evolução ascendente ou descendente, se a postura “presente” pode ou não ser considerada “funcional”? Numa perdulária hipótese, a intervenção gera ainda mais dor, mergulhando o paciente ainda mais fundo na necessidade de “positivar” o resultado. Mas, decerto, muitos terapeutas conceberão a legitimidade de uma intervenção em que a “dor” é implicada enquanto “caminho” inevitável. Mas será mesmo legítima esta intervenção? Não será preferível, meramente, compensar? Mas isto poderia contender um tratamento já mais “funcional”, anti-sintomático. Que também não dispensa o placebo, mas permite, talvez, delinear melhor o seu sortilégio.
Relativamente à coluna vertebral, há que conceber que assim como o alongamento poderá ajudar a libertar o processo articular, também poderá dificultá-lo, sobretudo se a força for excedida, e isto é ainda mais saliente se considerarmos que o mesmo é efectuado em flexão, comprometendo os discos intervertebrais com potencial hérnia. Esta pode ser causada ou agravada pela contratura, mas o tracto desta pode, como já vimos, perigar o estado da primeira. O que não invalida que o alongamento posterior possa libertar outras estruturas anteriores ou ser sequenciado por um trabalho funcional capaz de “compensar” o trabalho de flexibilidade. O que nos leva forçosamente ao
(2) modelo “funcional”, preferencialmente em decúbito ventral, e que, ao nível discal, envolve a extensão, capaz de fazer reabsorver o núcleo pulposo do disco inter-vertebral. Mais aceite empiricamente, ele inclui terapia manual, exercício e, até, trabalho de força, que poderiam já ser realizados em decúbito dorsal, após e/ou em simultâneo com o trabalho de flexibilidade. O seu efeito é de “curto prazo”, não visa, tamanhamente, a causa “postural”, mas, sobretudo, a causa “local”, é mais “analítico” e fortemente anti-sintomático. Adapta-se melhor ao contexto da “episteme” (Foucault 5) “materialista” e ao tracto do “grupo”.
Ambos os modelos possuem importantes implicações. Por exemplo, o primeiro deplora o trabalho de força dos extensores do tronco, bem como a higiene postural, que acalenta o trabalho voluntário e “ansioso” em músculos de controlo fortemente “inconsciente”. O segundo representa o rigor “empírico”, a necessidade de obter resultados palpáveis e de controlar os excessos dogmáticos do primeiro. Por outro lado, é, de todo, admissível pejar o equilíbrio entre os dois modelos, com o primeiro a preparar o segundo e este a contender o primeiro. Ademais, as próprias posturas podem viabilizar a terapia manual, o movimento e o trabalho de força, em simultâneo ou em obrigatória sequência 6, 7, 8.
O equilíbrio entre o modelo “postural” e o “funcional” é, igualmente, o ponto de equilibração do próprio ráquis, quando as cadeias posteriores e as anteriores se harmonizam na força e na “postura”, com um valor electromiográfico mínimo de activação muscular posterior. Atemos, aqui, um equilíbrio neuromuscular, que, para alguns, não é função do treino de flexibilidade “postural” mas da “função” motora. No entanto, demonstrá-lo remete-nos, de novo, para a dualidade inicial.
Na verdade, nunca podemos saber se, de facto, o equilíbrio em causa aproxima Sujeito e Objecto, ou se se limita a renovar a Ordem com que se esparge um cômputo novel de relações. Nova Ordem indicia uma tensão liberal, anterior, que reinicia a dualidade. Nesta, difícil é saber quem é “Sujeito” e/ou “Objecto”, porque nem sempre o terapeuta se sacrifica em nome do paciente, ambas as ordens, posterior e anterior, possuem seu “quantum” de dogmatismo, sendo “ideal” que a “postura” do paciente seja respeitada no plano da sua “normalidade”. Só assim é possível esquivar as compensações que advêm dos excessos paradigmáticos. Obviamente, as compensações adstritas ao paradigma “normativo”, “positivo”, podem, também elas, tolher a “estruturação”, mas, como dissemos, não é, de todo, possível saber o que representa, genuinamente, a postura “ideal” do paciente. Ater, somente, o modelo do terapeuta é arriscar tratar mais a saúde do clínico do que a do paciente, porventura, também o terapeuta é paciente do paciente, aliás, ele integra a Unidade finalista, tal como o contexto, cuja saúde depende da dos agentes envolvidos, mas sempre de acordo com um “Todo” que não se resume à soma das partes.
Avocar um modelo simultaneamente “funcional” e “estrutural”, centrado na força muscular, é ir além do modelo “dual” que consente reforçar os músculos anteriores, fásicos, com/após a inibição dos posteriores. De qualquer forma, a zona “posterior” é sempre inteirada como defensiva, “arqueológica”, e a “anterior” como “agónica”, potente, liberal, lugar de todas as semiologias que se projectam e reclamam a autonomia fisicalista. O liberalismo/positivismo “sintomático” expressa a falha da semiologia “postural”, mas também pode resultar do seu esgotamento psicossocial. Por sua vez, a força “liberal” poderá ter o condão de redesenhar as defesas, promovendo a recriação da postura, a qual poderá, mais tarde, prover aos sintomas. O caminho é interminável, existe a promessa de uma interpretação inesgotável, que coloca, entretanto, o paciente e o terapeuta numa relação de duelização de papéis, a qual dualiza, tal-qualmente, o lugar, de conversão, do corpo face ao sentimento.
No contexto desse duelo, o terapeuta convida-se, constantemente, a transformar o paciente, com acção e intenção, enquanto “interferência contextual”. O que é placebetizado, quando perdido, é convertido em sintoma. Se a “estrutura” do paciente resiste, é, por sua vez, este que transforma o terapeuta, prescrevendo-se um conjunto de mutações, uma dinâmica “ideal”, que pode estender-se indeterminadamente no “absurdo” (Kierkegaard 9, Camus 10), e que irá ser obstaculizado, somente, pela natureza profunda e “normativa” que conserva, frequentemente, uma matriz já dificilmente alcançável.
Na medida em que a “Causa” remete indefinidamente para um caminho infindável, encontramos, aqui, a falência das abordagens holísticas, que, na promessa de atingirem o estado de “Ser”, poderão operar uma “caça aos gambozinos”, cientificamente infalsificável (Popper 11, 12, 13), passível de “acrescentar” e “idealizar” mais do que desvela ou redime. É o perigo da “pós-modernidade”, com o seu discurso amplamente relativista, que, ao tirar o tapete à narrativa placebetizadora “positiva”, cauciona a estabilidade de inúmeros sujeitos. Pluralizar as “estruturas”, bem como as “semânticas” (Ricoeur 14), é abrir a porta a um caos tão enriquecedor, quanto destrutivo. Se “tudo vale” (Feyerabend 15), então nada vale. E quando as estruturas sucumbem, surge a psicose dos “sintomas” e a fome de Clínica. Já aqui não há placebo ou positividade que possam salvaguardar a saúde “espiritual”, o clínico terá de fazer as vezes de um demiurgo capaz de criar tanto a diegese quanto a regra do corpo-máquina. Esta prepondera num mecanicismo (La Mettrie 16), num purismo, a partir do qual a assinatura do clínico enforma a narrativa individuadora. O excesso castrador fornecerá o fruto sublimador de outras estruturas, passíveis de trair o Código inicial. A positividade é imediata, a relação é mediata. O “espírito” é o fantasma inconsciente cuja energia projecta a ficção de uma consciência necessariamente contendida por um Superego de dimensões titânicas. O “clínico” seduz a consciência, quiçá possa obliterar-se no divino de um paciente, passando este de percipiente a agente.
O trabalho dialéctico com o paciente é, praticamente, inolvidável em Fisioterapia. E, no entanto, a contextura nacional é de mote a seguir o mero prescricionismo. Mesmo querendo evitar a ficção placebetária, a dialéctica “fisioterapêutica” não pode deixar de ser holística, na medida em que as variáveis agem num conjunto dinâmico, não deixando, nunca, de ser necessário seguir a coerência biológica e semiológica compactada no raciocínio clínico. A prática baseada na evidência deve ser uma prática baseada no raciocínio. Mas, é claro, clinicamente, a “evidência” ilude, porque se trata, aqui, de uma dinâmica do “antes” e “depois”, em que o tempo esgrime os factores de um modo tão variável que não haveria forma racional alguma de justificar a superioridade absoluta de uma intervenção face a outra. A experiência clínica demonstra, muitas vezes, que tudo produz algum resultado e que, por outro lado, não há nenhuma estratégia que não represente um risco. Haverá, sempre, algo a congratular e algo a criticar. E uma boa dose de “incontrolado” que a arrogância terapêutica impede de conceber.
Acontece o mesmo com a própria actividade física, que a pós-modernidade convida a ser mais “psicomotriz” e menos “analítica”. E independentemente da resultante, é precisamente a dinâmica “postural” que sugere que o exercício pode perigar as articulações, dando preferência a uma abordagem “holística” em que o corpo é visto como “frágil”. Isto rompe, obviamente, com a perspectiva moderna, científico-liberal, em que o corpo é encarado como máquina produtiva. O pós-marxismo, bem como o pós-modernismo, contribui, ainda agora, para fornecer uma visão da medicina como “praxis” liberal, capitalista, mercantilista, submetida ao Sistema. Morreu, há muito, a visão de uma ciência moralmente isenta. Ela é investida por uma moral de “poder”. Se é isenta moralmente é porque é desumana. E é em desadaptação face a essa desumanidade que se multiplicam pacientes e terapeutas “new age”, que só superficialmente parecem mergulhados num complexo “espiritual” capaz de mover os demónios mais obscuros. Este é, bem vendo, um pedido de ajuda, aproveitado pela barganha da pseudociência e iludindo o terapeuta com progressos que são mais fantasmáticos do que “positivos”. Entretanto, à medida que a própria medicina se foi humanizando, tantos outros profissionais patentearam a sua arrogância face ao suposto “poder médico”. Mas não há menos poder nos que demonizam a própria psicologia e/ou a psiquiatria. O intuito é, sempre, de domínio, convencido está o terapeuta de que, não dominando, será dominado. Mas, mesmo biologicamente, se atesta uma sinergia, uma simbiose, entre enredos, que pode fornecer o alimento ao equilíbrio.
No paciente com raquialgia, aquele é representado pela intrínseca verticalização. Não interessa que a coluna esteja algo “torta”, o equilíbrio implica tolerância. Flexibilizar a cadeia muscular posterior é delongar as referências “tolerantes”. Exceder o alongamento é potenciar a sublimação de uma estrutura novel passível de implementar renovada “normalidade”. Enquanto o terapeuta controla as compensações, vai permitindo alguma liberdade. Nesta atitude liberal, move-se e reforça-se, e é também o corpo do terapeuta que se reforça. Por vezes, este absorve a entropia do corpo do paciente. Mas a sinergia harmónica pode ser partilhada, e, aqui, desenha-se novo Princípio arquetípico, que é, quiçá, o regresso à Origem. A ameaça “empírica” fará o desafio. Por isso convém reforçar para além de alongar, porque o excesso de mobilidade presta-se à libertinagem e à instabilidade. Não se tira a defesa, a culpa, sem que se possa ceder outra arma “estrutural”. Ou o paciente acaba por ficar ainda mais encurtado, que é compensação defensiva, de novo, um “pathos” prestes a exaurir-se. O “pathos” é um movimento de racionalidade neurótica, subjectiva, pedindo de empréstimo a Razão, a objectividade, do terapeuta. Este representa o Princípio da Realidade (Freud 17) capaz de produzir a unidade erótica, libidinal, do paciente. De algum modo, o intrínseco paternalismo compensa, cede “estrutura”, previne a psicose. O “excesso” é um exercício de poder, mas apenas se for percepcionado enquanto tal. Porque, aqui, não interessa o que as coisas são, mas a forma como são percebidas. Nessa medida, também não interessam os processos, mas unicamente os resultados. Mas estes podem caucionar outros resultados. Uma fórmula perfeita é irrealista. Mesmo quando se “cura” um paciente, isto terá, decerto, um efeito mais vasto, e este não é necessariamente beneficente. Daí que a própria ética clínica possa ser questionada, se assumirmos, por exemplo, que o paciente não é o “sujeito” singular, mas a família, a sociedade, a equipe multidisciplinar. Claro está que tudo o que fica dito se presta ao estabelecimento de uma unidade epistémica e linguística. Porque, se quisermos pedir de empréstimo outra “episteme”, tudo poderá mudar de aspeito.
Mas é precisamente a relação “terapêutica” que poderá operar outra “episteme”, podendo esta constituir renovada moral, diferente da convencional, mais centrada nos aspectos subjectivos e libidinais (Marcuse 18), sem que subsista o medo de uma interacção demasiado “íntima”, até porque, no limite, a resultante em jogo poderá estabelecer-se num “Todo” distancial, que aqui pede de empréstimo a visão “positiva”, um algoritmo de “menor sofrimento” que mudaria de instante a instante. É porque nos falta a omnisciência que ponderamos a necessidade de cruzar os dois modelos em vigência, base de uma intervenção reflexiva em que a análise anamnésica se faz na relação dinâmica com a nosologia sempre transformável com a própria intervenção. O “interventor” é intervencionado na medida em que se faz “objecto” do trabalho clínico, o terapeuta trata-se quando trata, a resultante implica-o e modifica o intrínseco acto, e isto inclui todo o vigor psíquico do suposto “paciente”, o qual se constrói “positivamente” na ligação com o terapeuta e o constructo “libidinal”. O Sistema não alcança, jamais, o equilíbrio perfeito, haverá, sempre, algum enlace em falta, e é deste que parte o ímpeto de novel domínio clínico, paradigmático e positivo.
O novo domínio, ao compensar uma parte do “Todo”, liberta “positivamente” outra parte para a expressão somática. E a compensação “positiva” liberta a Estrutura, arriscando a sua estabilidade. Há, portanto, uma circularidade perpétua, um “eterno retorno” que circunscreve as dimensões emocional e física, uma dualidade moral dominante-dominado (Hegel 19), que acomete o clínico, mesmo que este se presuma “ausente” e “objectivo”. É justamente a “subjectividade” que irá conduzir, empaticamente, o processo “terapêutico”, com todos os perigos requeridos de “transferência” analítica, na qual o corpo dúplice se acusa e acomete. Trata-te de um “pathos”, em que toda a evidência do “pecado” acerta o alvo “espiritual”, pelo que o corpo se transtorna corporeidade, o movimento, motricidade, e os signos “clínicos” assumem todo o seu poder transformador, passional e “espiritual”. Como sabemos, o último, na sua genuína acepção “incorpórea”, não pode ser medido, senão na sua resultante, daí a incomensurabilidade de uma compreensão “positiva” adequada daquilo que poderá, sempre, justificar-se como um “há-de provar-se”, mas isto, como vemos, não mata a sua virtude, apenas a transfere para o pranto de uma duplicidade epistémica que, criando conflito, esgota e refunde a “tragédia” de uma revolução do Sentido. Não queiramos, nunca, matar o sentido do acto “terapêutico”, acreditar desloca o “espírito”, a psique e o resultado “positivo”. O que não invalida a possibilidade de tudo voltar ao mesmo, derivado de um processo de des-sensitização neurológica. Atemos, aqui, mais uma vez, o “eterno retorno”, à boa maneira de Schopenhauer 20 ou Nietzsche 21. O clínico, se fosse mesmo um “deus”, deixaria, peremptoriamente, de ser um clínico. Se o momento mais feliz da vida de um terapeuta é aquele em que este deixa de ser terapeuta, há, apesar de tudo, a promessa de um regresso, que é como quem remete, mais uma vez, para o sintoma, a compensação, daquele caminho interminável. A compensação é a distância face a “Deus”, face ao Verbo, e o caminho é estender a manta de retalhos de diversos Verbos, onde o “clínico” assume o papel de um Cristo caído em tentação. Mas esta faz-se, constantemente, a partir de um nível mais elevado, à medida que a própria medicina/terapia vai extinguindo as hipóteses de compensação. Que é como quem aprisiona o corpo numa necessidade de voltar a pecar, a falhar o alvo prescritivo. Acertar em definitivo trava o progresso, desilude a função clínica, desemprega o terapeuta, que ora se vê, ele mesmo, curado, desculpabilizado, com a consciência perdida num caos, nas trevas onde a saudade já não redime. Aqui, temos o perfeito monismo, já não se trata, sequer, de ser “corpo” ou “espírito”, a questão já nem se coloca, como em Schelling 22. Também se extingue o mecanismo de defesa “dualizador” que serviu de eixo a este texto, onde “estrutura” e “função”, “espírito” e “matéria”, “razão” e “empirismo”, só aparentemente se diferenciavam. Houve, aqui, uma questão de oportunidade, de conforto explicativo, uma tentação de gradar o acto ainda tão pusilânime que, deveras, ainda fractura a relação dos “idealistas” e pós-modernos com os “materialistas”, tão fácil de perspectivar nas conflitos crescíveis entre “terapêuticas não convencionais” e “medicina positiva”. Fácil é ver que ambas se patologizam, se culpabilizam, porque a “guerra” é a condição da utilidade. E esta espraia os papéis sociais, morais, que desencadeiam um círculo perfeito onde a razão se transtorna caricatural, estando em todo o lado como irracionalidade, e estando no princípio de tudo como algo há muito perdido no tempo em que tudo se limitava a ser na espontaneidade natural. Bem vemos que a saúde não reflecte, apenas, um corpo singular, mas um fenómeno global cuja Lei se quer estável e eterna. Para isso, todos contribuem à sua maneira, porque todo o acto compensa algo, desilude algo, ao mesmo tempo que agrava um trajecto de percepções fugidias.
Desejar uma coluna equilibrada, um “pêndulo de Foucault”, não é demandar o fim da vida, mas uma certa impassibilidade, quando a postura é menos defensiva, tónica, e permite a exploração liberal dos membros “positivos”. Esta é a perfeita nudez, quando se produz uma certa previsibilidade, uma Ordem, que é aproximar em definitivo a aventura dos Sentidos da indiferença racional. Quando se cala a individualidade emocional, pode o ráquis exprimir a lógica universal, a erecção diferencial que mata o passado, o fantasma do anseio “clínico”. Mas convém que não exista prescrição ou modelo, porque estes tolhem a estrutura, assassinam a liberdade, a dança do corpo “motricidade” que envolve uma dialéctica irredutível a posicionamentos e/ou poderes. A normatividade moderna quer prescrever, mas esquece que a genuína prescrição é infinitamente diferenciável, móvel, pelo que o acto prescritivo se limita a matar a criatividade, a castrar superegoicamente o bipedismo. Haja postura perante a falha na inventividade, a positividade é a imediaticidade totalizadora, quando os fantasmas idiossincráticos se renderam ao “mais do mesmo”, isto só pode sobrevir quando o método e a lei foram rejeitados pelo terapeuta idiossincrático, sofredor, prestes a conhecer uma madrugada de assertividade relacional, quando o centro de controlo descendente cerebral jaz em silêncio, em rematada harmonia com um exterior de paisagens magnificentes, em que a paixão se substituiu pelo amor tranquilo. Não deixa, todavia, de haver amor, Cristo nascendo da imaculada e tangendo o Verbo perfeito. Este é o tecido logicizável, quando já não há nada a compreender, a interpretar.
Referências bibliográficas
1. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert; 1949.
2. Bienfait M. Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento fisioterápico. São Paulo: Summus editora; 1995.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
4. Bacon F. Novum organum. Porto: Rés; edição original de 1620.
5. Foucault M. Les mots et les choses. Gallimard; 1966.
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7. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
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9. Kierkegaard S. Temor e tremor. Guimarães Editores; edição original de 1843.
10. Camus A. Le mythe de Sisyphe. Gallimard; 1948.
11. Popper K. The logic of scientific discovery. Julius Springer; 1934.
12. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul, Ltd.; 1945.
13. Popper K. The poverty of historicism. Routledge & Kegan Paul, Ltd.; 1957.
14. Ricoeur P. Teoria da interpretação. Porto: Porto Editora; 1995.
15. Feyerabend P. Against the method. Verso Books; 1975.
16. La Mettrie. O homem-máquina. Lisboa: Editorial Estampa; edição original de 1747.
17. Freud S. Para além do princípio do prazer. Relógio D’Água; edição original de 1920.
18. Marcuse H. Eros and Civilization – A philosophical inquiry into Freud. Boston: Beacon Press; 1966.
19. Hegel GWF. A ciência da lógica. Edição original de 1812-1816.
20. Schopenhauer A. O mundo como vontade e representação. Porto: Rés; edição original de 1819.
21. Nietzsche F. Assim falou Zaratustra. Mem Martins: Publicações Europa-América; edição original de 1885.
22. Schelling FW. Exposição da ideia universal da filosofia em geral e da filosofia da natureza como parte integrante da primeira. Edição original de 1803.
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