Como estão estas crianças sete anos depois do início do estudo e da realização da primeira terapêutica, que consiste numa única injeção vitalícia?
HealthNews – O que é a SMA e como se manifesta?
Nuno Mendonça – A Atrofia Muscular Espinhal é uma doença a que se chama neuromuscular, porque envolve a perda de neurónios motores. Há vários tipos desta doença, mas aquela em que nos vamos focar é a SMA tipo 1, que é a mais grave.
Esta e uma doença genética rara, que aparece numa criança em cada 10.000 nascimentos. Embora seja rara, é uma causa importante de mortalidade infantil. Esta doença resulta da perda do gene SMN1, que codifica uma proteína (a Survival Motor Neuron – SMN) que é necessária para a sobrevivência dos neurónios motores. Portanto, sem esta proteína os neurónios motores morrem e subsequentemente aparecem sintomas como incluir fraqueza muscular, problemas respiratórios, dificuldades em engolir a comida e, eventualmente, num curto espaço de tempo, as crianças ficam sem se conseguir mexer. A maior parte destas crianças morre antes de chegar ao segundo ano de vida. Portanto, esta é uma doença absolutamente trágica na apresentação e evolução clínica.
Embora a Atrofia Muscular Espinhal tipo 1 consista na perda do gene SMN1 que mencionei, existe um segundo gene – o SNM2 que produz uma a mesma proteína mas em muito menor quantidade. Ajuda qualquer coisa, mas não satisfaz a falta do SNM1. Ainda assim, as células podem ter várias copias do gene SNM2, e quantas mais cópias tiverem, mais proteína funcional produz, melhor o prognóstico e menos graves são os sintomas.
HN – E o que torna tão complicado tratar esta doença?
NM – A morte neuronal é irreversível. Portanto, não temos tratamentos eficazes para nenhuma doença que cause morte neuronal, como a doença de Alzheimer, a esclerose lateral amiotrófica, a doença de Parkinson, etc… Todas estas doenças que levam à morte de neurónios são, por natureza, irreversíveis. É isso que acontece na SMA sem tratamento. No entanto, na SMA sabemos exatamente o que está a causar a doença – ausência dos genes. Assim, ao reintroduzir os genes antes que ocorra morte neuronal extensa podemos levar à recuperação das crianças. Quando introduzimos os genes queremos fazê-lo o mais rápido possível, para evitar que a criança tenha grandes sintomas e complicações. A parte difícil é mesmo essa: substituir o gene e pô-lo a funcionar em crianças que nasceram sem ele.
HN – Porque todo o estudo acontece em crianças mesmo muito jovens. A idade média era 16 meses, certo?
NM – Sim, no STR1VE-EU as crianças, para poderem participar no estudo, tinham de ter menos de seis meses de idade e todas as crianças que participaram já tinham sintomas. Nos primeiros meses de idade estas crianças já perderam uma parte significativa dos neurónios motores, e portanto há logo uma emergência de sintomas.
HN – Mas é fácil perceber estes sintomas em crianças tão jovens, com menos de seis meses de idade?
NM – Não é muito fácil, é verdade. As crianças têm as suas etapas de desenvolvimento motor e, dependendo da gravidade dos sintomas, podem parecer só ligeiramente atrasadas no desenvolvimento motor. Mas na SMA tipo 1 os sintomas são mais exuberantes. Os neuropediatras sabem que a doença existe, quais os sintomas e em que idade aparecem, pelo que estão alerta.
Isto é muito importante sobretudo agora, que temos esta terapêutica. Até há pouco tempo o tratamento era um tratamento de suporte multidisciplinar, em que a doença continuava a evoluir. Nesse sentido, agora que há tratamentos, mas que têm mesmo de ser aplicados antes de haver morte neuronal, há todo o interesse em alertar a comunidade médica para esta doença para que sejam feitos diagnósticos precoces. Muitas vezes, o que acontece é que as crianças demoram muito tempo a chegar ao neuropediatra.
HN – E como é que surge o Zolgensma, e de que forma atua no corpo?
NM – O Zolgensma é um medicamento inovador digno de ficção científica. Ele usa o capsídeo do adenovirus-9 (AAV 9) como mecanismo para entrar nos neurónios e introduzir o gene em falta. As células humanas fazem a endocitose do capsídeo do AAV-9, depois o capsídeo degrada-se dentro da célula e o material genético que vai lá dentro e que codifica a proteína forma um epissoma, que não faz parte do material cromossómico mas reside no núcleo. A partir desse momento, as células conseguem produzir a proteína em falta, garantindo, assim, a sobrevivência neuronal.
No fundo estamos a utilizar um mecanismo viral que sabemos que chega aos neurónios para levar o material genético em falta nas crianças com SMA.
Com este medicamento, as crianças envolvidas no estudo passaram de um mau prognóstico, que culminava na morte perto dos 2 anos de idade, para terem oportunidade de crescer, e alguns dos primeiros bebés tratados celebraram já o quinto aniversario. Em termos de desenho de ensaio clínico este é o melhor resultado de todos. Ao contrário de medicamentos que existem para a tensão arterial e diabetes em que as pessoas têm de tomar o mesmo medicamento ao longo de décadas para minimizar o risco de enfarte ou AVC, este medicamento traz uma diferença da noite para o dia.
HN – Os dados que li sobre o estudo referem números na ordem dos 60%-70% em relação a avanços por parte dos pacientes. Cerca de 60% dos pacientes do estudo tiveram avanços motores sob o efeito do Zolgenesma. Porque é que este medicamento só surte efeito em 60%-70% destas crianças?
NM – Quando fazemos um ensaio clínico há várias coisas que são monitorizadas – idealmente todas as possíveis. Para lhe dar uma ideia, no STR1VE-EU, a percentagem de crianças que sobreviveu livre de ventilação permanente (porque recorrer à ventilação era algo comum antes do tratamento) é para cima de 90%. Ou seja, enquanto as crianças não tratadas vão morrendo ou precisando de ventilação permanente, e quando chegam aos dois anos só 20% sobrevive; no estudo mais de 90% das crianças que participou e foi tratada sobrevive.
Outro aspeto que o estudo demonstra é a aquisição de “metas motoras” – chamemos-lhe assim: se a criança consegue caminhar, se se consegue sentar… e na SMA estas metas deixam de existir na mesma altura que uma criança normal as alcança: Se uma criança normal se senta aos seis meses, uma criança com SMA se calhar nunca se senta. Mas com tratamento passa a sentar-se aos sete meses. Ou seja, há um atraso para a aquisição dessas metas motoras, mas estas tornam-se possíveis.
Como tal é importante acompanhar o desenvolvimento destas crianças durante longos períodos. E o que se vê nos estudos de seguimento é que as metas motoras podem ser alcançadas, embora mais tardiamente. Assim, não é de estranhar que nem todas as crianças recuperem, ou que recuperem a velocidades diferentes, mas o fator mais importante é a gravidade da doença à data do tratamento com Zolgensma. Voltamos ao conceito original: se perderam muitos neurónios motores vão ter uma recuperação diferente. Portanto, uma criança gravemente debilitada na altura em que lhe é administrado o Zolgensma pode esperar uma recuperação mais lenta que outra criança praticamente assintomática. E nós, de facto, confirmámos isso através de outros estudos clínicos, um dos quais realizado em crianças antes de terem sintomas. Nesse estudo, o que se vê é que as metas motoras são muitas vezes alcançadas em alturas semelhantes às de uma criança sem a doença. Há uma diferença brutal entre tratar uma criança sem sintomas, ou com sintomas.
HN – Todas as crianças com SMA são elegíveis para o tratamento, ou existem restrições?
NM – Todos os medicamentos têm limitações que decorrem da maneira como o estudo foi feito. Algumas das limitações ao Zolgensma são, por exemplo, a presença de anticorpos para o vetor viral utilizado. O AAV-9 causa uma infeção assintomática, pelo que podemos ter anticorpos sem sabermos Se a criança tiver criado anticorpos, o que não é comum, o tratamento pode não ser eficaz. Depois existe uma série de outras condições. As crianças, para fazerem o tratamento, têm que realizar um ciclo de corticosteroides para minimizar a resposta autoimune ao tratamento. Nesse sentido, não podemos ter uma criança com qualquer infeção a fazer o tratamento.
HN – Ao fim ao cabo, estamos a falar de alguma forma de “edição genética”. A utilização deste medicamento não levanta questões éticas e morais?
NM – A pergunta é válida no sentido em que estamos, de facto, a proceder a uma alteração genética. Estas crianças, até há 7 anos atrás (a data do primeiro tratamento), não sobreviviam. Por outro lado, o problema seria se ao tratarmos a criança com o gene estaríamos a danificar alguma outra coisa, mas este material genético, quando é levado para o núcleo, não integra o cromossoma. A única coisa que aquele epissoma faz é produzir a proteína SMN1. Estamos, portanto, meramente a corrigir o défice que existe.
HN – Restam muitos anos de trabalho a acompanhar o desenvolvimento das crianças?
NM – Sim. Temos de perceber exatamente o que é que acontece. À partida, não há nada que consideremos que possa vir a correr mal a longo prazo. Temos é que perceber se os efeitos benéficos da terapêutica se mantêm para o resto da vida, e a única maneira de o fazer é através do acompanhamento. Neste momento, as crianças que temos acompanhado têm já entre sete a oito anos de idade, e estão a evoluir bem. Nada nos faz pensar que houve uma perda da eficácia da terapêutica, mas daqui a 40 anos… Não se sabe.
Felizmente, os neurónios são células que se dividem pouco. Por isso, após a integração do material genético não há razão para pensar que a célula vá deixar de produzir SMN1. Mas nestas coisas há que monitorizar e acompanhar.
Entrevista de João Marques/HN
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