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Pandemia de covid-19: a Saúde Pública como primado do bem comum
Durante muitos séculos, as epidemias traduziam-se em dois comportamentos coletivos: fuga e perseguição. Fuga dos poderosos, para zonas de baixa densidade populacional (campo); e perseguição de grupos étnica ou religiosamente minoritários, por parte da população que permanecia nas cidades (a maioria, com menos recursos).
A resposta em saúde pública era limitada ao isolamento de doentes e à quarentena de contactos ou, mesmo, de populações inteiras. A quarentena geográfica, implementada através de cordões sanitários, visa o controlo de surtos e a prevenção da propagação populacional da infeção, mediante a circunscrição territorial das comunidades originalmente afetadas.
Na prática, foi o que prevaleceu, em 2020, na gestão da pandemia de COVID-19, face à ausência de intervenções alternativas. O cordão sanitário imposto ao concelho de Ovar, em março daquele ano, foi uma dramática, mas bem-sucedida, revisitação da história da Medicina de Saúde Pública.
As pandemias são como as guerras: exigem a mobilização de toda a sociedade, esgotam recursos e exaurem vontades. Como nas guerras, assistimos ao melhor e ao pior da natureza humana. No limite, colocam indivíduos contra indivíduos, comunidades contra comunidades e países contra países. Quando isso acontece, a derrota torna-se inevitável.
O desenvolvimento das vacinas contra a COVID-19 fez emergir episódios de competição iníqua. Desde logo, a nível internacional, o acesso a estas tecnologias de saúde é condicionado pelo poder económico de cada estado ou comunidade de estados.
Em saúde pública, a equidade no acesso à prestação de cuidados determina a sua efetividade. No caso da vacinação, depende de critérios pré-definidos, no respeitante à seleção dos grupos-alvo e respetivos calendários vacinais.
A priorização é, do ponto de vista ético e moral, a única forma de assegurar a organização e prestação da resposta, num contexto de escassez de recursos e de procura virtualmente universal.
Salienta-se a externalidade do ato vacinal: o vacinado, uma vez imunizado, protege aqueles que, não tendo sido vacinados, com ele contactam – não obstante a proteção contra a doença exigir a vacinação (individual) dos mais vulneráveis. Uma vez atingido um determinado limiar, que varia em função da infecciosidade da doença, os imunes protegem o grupo em que estão incluídos contra epidemias por essa doença.
Considero que todos aqueles que garantem o funcionamento da ordem e da legalidade democráticas deviam ter sido contemplados, de forma transparente, nos grupos inicialmente priorizados. Destaco, pela sua notoriedade e relevância, os titulares de órgãos de soberania.
Mas considero, igualmente, que a sua inclusão recente, pós-eleitoral, contribui para adensar a desconfiança nas instituições do Estado – incluindo, reflexamente, nas responsáveis pela gestão da maior ameaça que o nosso País enfrenta desde há cem anos.
Sobre todos os outros e no interesse de todos, deve sempre prevalecer, nos grupos a priorizar, a “linha da frente” desta guerra contra a COVID-19: os prestadores diretos de cuidados de saúde. Dentre estes, os primeiros dos primeiros são aqueles que asseguram a prestação de cuidados, a doentes infetados ou potencialmente infetados com o SARS-CoV-2, em contexto assistencial (hospitalar e de atendimento dedicado).
Por outro lado, sem prejuízo de se reconhecerem as contingências inerentes a uma qualquer campanha vacinal, avançar para a vacinação de um grupo-alvo implica a cobertura do grupo que o precede em termos de hierarquia de prioridades.
2020 foi o ano da pandemia; 2021 também o será. A diferença, ainda que decisiva, está na existência de vacinas. Apesar da vacinação contra a COVID-19 permitir vislumbrar o princípio do fim, vários meses passarão antes do “fim” se tornar o princípio de uma nova e mais salutar realidade.
É, pois, imperativo que a ética e a ciência sejam o nosso guia, nesta fase crucial da História nacional e mundial. A proteção da saúde da população assim o exige.
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