Joana Assunção: “Housing First” tem taxas de sucesso de 80%

02/19/2021
Contra todos os preconceitos, o “Housing First”, uma solução de habitação destinada a pessoas em situação de sem-abrigo, tem taxas de estabilidade habitacional de aproximadamente 80%, revela Joana Assunção, assistente social do GAT.

HealthNews (HN)- O que é o projeto “Housing First” e a quem se destina?

Joana Assunção (JA)- O projeto “Housing First” do GAT, financiado pela Câmara Municipal de Lisboa e desenvolvido no âmbito do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo 2019-2023,  visa proporcionar uma habitação integrada na comunidade a pessoas em situação de sem-abrigo (PSSA), nomeadamente Ageing Users (pessoas que usam drogas, acima dos 40 anos de idade), comunidade LGBTI+, pessoas que vivem com VIH 50+, mulheres CIS e Trans.

O programa de “Housing First” promove o acesso a uma habitação através do apoio ao arrendamento e, simultaneamente, garante o suporte quer em contexto habitacional, quer na comunidade, através de um acompanhamento contínuo e individualizado. Desta forma, as respostas e o apoio proporcionado adequam-se às necessidades e às escolhas da pessoa. O objetivo é fomentar a maior autonomia possível ao longo da intervenção.

O projeto assenta em três pilares fundamentais: a sustentabilidade da habitação (apoiando a pessoa na sua gestão, fomentando o estabelecimento e manutenção de boas relações com a vizinhança…), a saúde e o bem-estar (garantindo o acesso aos cuidados de saúde e ao tratamento adequado) e a integração social (promovendo a autonomia na habitação e na comunidade, fomentando o acesso a oportunidades e a diferentes interações sociais).

Angariamos casas no mercado de arrendamento normal. O objetivo não é criar habitação social ou colocar as PSSA todas juntas. Aliás, de acordo com a filosofia original do “Housing First”, no mesmo prédio, o número de apartamentos destinados a pessoas sem-abrigo não pode ultrapassar ⅓ do total. O objetivo é que se integrem na comunidade; não é criar “guetos”. Serão arrendatários, à semelhança dos demais cidadãos, a quem deverão ser garantidos os mesmos direitos e oportunidades, e exigidos os mesmos deveres e responsabilidades.

HN- Em que se diferencia o “Housing First” das respostas tradicionais de habitação para pessoas em situação de sem-abrigo?

JA- Na maioria dos programas de habitação que atualmente existem, a pessoa tem de estar organizada para aceder a uma habitação. Percebemos que, para muitas PSSA, essa condição constitui um entrave, ou porque não conseguem alcançar esse “nível” de organização, ou porque, mesmo quando são bem sucedidas nesse sentido, acabam por voltar à situação de sem-abrigo quando reentram num processo de desorganização e não dispõem do suporte e do acompanhamento necessários para as apoiar ao longo do processo.

Por exemplo, pessoas que vivem há muitos anos na rua, pessoas que usam drogas ou pessoas com doença mental, não conseguem muitas vezes aceder a essas respostas, pois não têm o nível de organização esperado ou, quando acedem a uma habitação, não têm sucesso na sua manutenção.

Não invariavelmente ouvimos expressões, tais como “está na rua porque quer”, “é utilizador de drogas; não tem capacidade para estar numa habitação com consumos ativos”, ou “aquela pessoa com doença mental nunca terá capacidade ou autonomia para viver sozinha”. São “lugares comuns” que na realidade da intervenção social se colocam muitas vezes. Mas, ao invés de esperar que a pessoa tenha a capacidade ou o desejo de se adaptar às soluções disponibilizadas, cada vez mais deveremos percorrer o caminho inverso e procurar que a resposta “calce” o pé da pessoa.

Por outro lado, para um indivíduo que toda a vida viveu na rua ou que, pelo contrário, sempre teve o seu próprio espaço, não é fácil partilhar um quarto com outras pessoas ou identificar-se com as regras dos albergues e centros de acolhimento (será que eu ou a sra. jornalista nos adaptávamos a um centro de acolhimento?!?). São situações complexas para as quais, muitas vezes, a resposta não é tão simples quanto ter um teto para dormir.

As restrições impostas afastam muitas vezes estas pessoas do tal “teto” dos centros de acolhimento ao não permitirem, por exemplo, que entrem alcoolizadas ou estejam sob o efeito de drogas. No “Housing First”, não constituem fatores de exclusão.

O “Housing first” parte, assim, do pressuposto contrário: vamos dar o básico – um teto, alimentação, suporte e acompanhamento sistemático – para que a pessoa tenha a oportunidade de se organizar, e vamos apoiá-la ao longo de todo o processo – entendido como um continuum que, tal como a vida, terá momentos de conquista, de perda, de (re)conciliação, de recomeço(s) sucessivo(s) e de aprendizagem.

HN- Qual é a taxa de sucesso do programa?

JA- Apesar das pessoas poderem pensar, à partida, que as coisas não vão correr bem porque são, por exemplo, PUD’s e não existe a imposição de tratamento ou abstinência como condição de acesso, ou são pessoas com doença mental e o programa não obriga ao tratamento psiquiátrico, o projeto “Housing First” – baseado no programa “Pathways to Housing”, originário dos Estados Unidos no início dos anos 90– tem taxas de sucesso, ou seja, de retenção na habitação (ao fim de 12 meses), na ordem dos 80%.

Existem bastantes evidências científicas (que vão aumentando com o desenvolvimento de programas baseados na mesma filosofia pelo mundo fora) de que os programas de “Housing First” são uma solução eficaz para a situação de sem-abrigo, em particular quando esta questão é atravessada por outras problemáticas, como o abuso de substâncias, a doença mental, ou outras comorbidades.

Embora o programa não imponha o tratamento psiquiátrico ou relativo ao uso de substâncias, e assente fundamentalmente na escolha da pessoa, o que se verifica é que a o acompanhamento e os serviços de suporte que disponibiliza, conduzem a uma maior participação e adesão da pessoa, por exemplo, a programas de reabilitação/abstinência, formação e escolarização, verificando-se ainda uma redução no número de hospitalizações (e do tempo de hospitalização).

HN- Quais são as obrigações das pessoas que acedem ao programa “Housing First”?

JA- Num programa de “Housing First”, as obrigações ou “regras” impostas são apenas duas:  o pagamento de uma renda (até 30% do rendimento da pessoa) e a aceitação de visitas de acompanhamento com uma periodicidade mínima semanal. Estas duas únicas obrigações do programa “Housing First” têm como objetivo, por um lado, responsabilizar a pessoa pela sua habitação, garantindo ao mesmo tempo que o valor exigido representa uma taxa de esforço aceitável face aos seus rendimentos e, por outro, através das visitas de acompanhamento, assegurar que tem o suporte necessário para a gestão da habitação e para o desenvolvimento do seu projeto de autonomização.

Se a pessoa tiver um rendimento – poderá não acontecer inicialmente porque muitas PSSA não estão documentadas nem recebem qualquer apoio social – terá de destinar 30% para a renda. Se receber, por exemplo, um RSI singular (cerca de 189 euros), pagará aproximadamente 56 euros. Essa responsabilidade ajuda também a criar um sentimento de pertença.

Por outro lado, terá de acordar uma visita mínima semanal com os técnicos da equipa do “Housing First”. Este acompanhamento permanente, por parte dos assistentes sociais e  psicólogos, não tem um caráter “policial”. Somos, isso sim, aliados da pessoa na sua recuperação, (re)organização e adaptação à habitação. As visitas são acordadas no dia e hora entre a PSSA e o técnico, de preferência na habitação, embora muitas vezes seja importante, para a relação de ajuda e para a integração na comunidade, poder estender o tempo de acompanhamento a um passeio pela vizinhança, por exemplo.

Numa fase inicial, este acompanhamento destina-se a agilizar a articulação com todas as entidades que podem prestar apoio financeiro, alimentar ou de outro tipo, bem como garantir que estes cidadãos conhecem os diferentes serviços disponibilizados na comunidade de residência. Por exemplo, ativar o apoio alimentar da junta de freguesia, marcar um atendimento na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fazer ligação ou religação aos serviços de saúde, tratar de documentação, etc.

HN- No caso de um doente com VIH, está previsto, por exemplo, apoio no acompanhamento às consultas?

JA- No “Housing-First”, as únicas obrigações das pessoas são aquelas duas que referi anteriormente. Se a pessoa quiser continuar a consumir drogas, por exemplo, o nosso papel, enquanto técnicos, é seguir a abordagem de redução de riscos e minimização de danos (RRMD), aconselhando e sensibilizando para um uso mais informado e seguro.

Se lhe tiver sido prescrita uma determinada medicação e não a quiser fazer, não é obrigada a isso. Mas, obviamente que o nosso objetivo, no “Housing-First” ou em qualquer outra intervenção, é que a pessoa esteja o melhor possível, e isso inclui os aspetos relacionados com a sua saúde. Por isso, iremos sempre apoiar e sensibilizá-la para o rastreio do VIH, hepatites e outras doenças. Se não tiver feito nenhum rastreio recentemente e desejar fazê-lo, articulamo-nos com os outros serviços do GAT para promover a sua realização.

Se a pessoa for VIH positiva e conhecer o seu estatuto serológico, apoiamo-la na religação aos serviços de saúde, nas deslocações às consultas ou para realizar exames complementares de diagnóstico, e na toma da medicação, se esse for o seu desejo. O acesso, a adesão e a retenção aos cuidados de saúde é, de resto, uma das missões do GAT.

Uma pessoa VIH positiva que esteja a viver na rua, em cima de cartões ou numa tenda, tem muita dificuldade em fazer a medicação com regularidade, inclusive em conservá-la. E se não se alimentar bem, além do impacto negativo direto sobre a sua saúde, mais dificuldade terá em lidar com possíveis efeitos secundários, apesar de atualmente, com o desenvolvimento e evolução da terapia antirretroviral, esses efeitos serem menos severos.

A evidência científica demonstra que uma pessoa em situação de sem-abrigo, sem qualquer doença de base, está muito mais sujeita a adquirir outras doenças. Uma pessoa com VIH e a viver na rua, com as dificuldades adicionais na toma da terapia antirretroviral (TARV), a exposição a condições atmosféricas adversas e a escassez ou inexistência de condições sanitárias, mais exposta está ao desenvolvimento de outras infeções.

Por todos estes aspetos, o acompanhamento promovido pelo “Housing First” a estes cidadãos é fundamental, ao garantir o acesso a cuidados médicos (seja pela ligação aos serviços, seja pelas deslocações), e ao promover um suporte que lhe permita alcançar uma boa qualidade de vida, não negligenciando como as diferentes componentes se ligam e entrecruzam: físico, emocional e social.

HN- Qual é a capacidade do “Housing-First”? O projeto é economicamente viável?

JA- Recebemos financiamento para 40 habitações. O projeto teve início em setembro de 2020. Neste programa da Câmara Municipal de Lisboa, foram aprovados projetos de mais cinco organizações, num total de 200 habitações. Procuramos essencialmente tipologias T0 ou T1, para casais, e ainda não conseguimos as 40 habitações porque procuramos no mercado de arrendamento regular, como indiquei, onde temos de competir com a população em geral, que procura habitação a preços baixos.

Contrariamente a todos os preconceitos, o “Housing-First” tem taxas de sucesso bastante elevadas quer em termos do tempo de retenção na habitação, quer economicamente.

Para continuarem, os projetos têm de demonstrar que são eficazes e eficientes. Os programas de “Housing First” têm demonstrado ganhos a nível de poupança para as comunidades: a pessoa é internada menos vezes, seja por questões de natureza física ou psiquiátrica, os tempos de hospitalização são inferiores, e existe também uma diminuição no número de detenções, bem como de utilização de abrigos de emergência.

Os estudos avaliam não só as questões sociais, de qualidade de vida e de impacto social, mas também a eficácia. O “Housing-First” tem demonstrado ser uma resposta eficiente em termos económicos, e creio que por isso, aliado às evidências do seu impacto na redução das PSSA, a aposta neste tipo de projetos será crescente, como de certa forma temos vindo a observar um pouco por todo o mundo nas últimas décadas, apesar de todo o ceticismo que se poderia colocar (e ainda se coloca!) a este tipo de abordagem.

HN/MMM

1 Comment

  1. Vitor Malhado

    Trabalho notável! Muitos parabéns à GAT.

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