O futuro na hemofilia

24 de Fevereiro 2021

Os medicamentos baseados em terapia genética têm o potencial de melhorar significativamente a vida de pessoas que têm doenças causadas por alterações genéticas, algumas das quais incapacitantes e potencialmente fatais. Se forem bem-sucedidos, imaginem as possibilidades…

Atualmente há mais de 7.000 doenças raras conhecidas em todo o mundo. Destas, 80% ou quase 6.000, são de origem genética, afetando cerca de 320 milhões de pessoas globalmente. A hemofilia é uma destas doenças genéticas raras, caracterizada como distúrbio hemorrágico. O sangue contém muitas proteínas que ajudam a parar as hemorragias, chamadas fatores de coagulação. As pessoas com hemofilia têm níveis baixos ou mesmo ausência de um destes fatores da coagulação, resultado de um defeito genético no ADN (ácido desoxirribonucleico). Como consequência, nas pessoas com hemofilia, a coagulação é mais demorada ou inexistente e o principal problema são as hemorragias frequentes, especialmente nas articulações e músculos. Para as pessoas com hemofilia o peso de viver com a doença pode ser enorme, porque a condição é rara, mas os desafios são frequentes e diários, desde o diagnóstico ao tratamento e reabilitação, tanto para os doentes como para os familiares e cuidadores.

Hemofilia – Uma Doença Genética
Apesar da causa de muitas doenças raras permanecer ainda desconhecida, sabe-se que a maioria é de origem genética e algumas estão já bem caracterizadas, como a hemofilia. Uma doença genética é causada por uma mutação num gene. Os nossos genes, constituídos por cerca de 30 milhões de códigos de ADN, são responsáveis por funções específicas do normal funcionamento do corpo. Uma mutação é, no fundo, uma alteração na sequência da composição do genoma (material genético constituído pelo ADN). Estas doenças são muitas vezes herdadas ou, em casos raros, ocorrem espontaneamente. Como os genes desempenham um papel essencial na determinação da função de cada uma das células no nosso corpo, como por exemplo a produção de fatores de coagulação, sempre que algo nos genes se altera, pode provocar uma modificação capaz de causar doenças genéticas como a hemofilia, que podem ser incapacitantes e potencialmente fatais.

«Estas terapêuticas inovadoras e únicas irão transformar o paradigma de tratamento em todo o Mundo nos próximos anos»
Susana Castro Marques, Diretora Médica da Pfizer Portugal

Apesar das barreiras e limitações inerentes à raridade destas doenças, temos presenciado desenvolvimentos técnicos e científicos que têm permitido avanços em diversas áreas do conhecimento, nomeadamente na hemofilia, por ser uma doença bem caracterizada e causada pela mutação num único gene. A Agência Europeia do Medicamento (EMA) tem encorajado as companhias farmacêuticas a investigar e desenvolver medicamentos para as doenças raras – os denominados Medicamentos Órfãos. No campo da hemofilia, a introdução dos fatores de coagulação recombinantes na década de 90 representou um avanço significativo no tratamento da doença, permitindo o tratamento profilático das hemorragias. Após um período de pouca inovação entre finais dos anos 90 e início dos 2000, tem-se presenciado recentemente um avanço tecnológico, culminando na disponibilização de diversos tratamentos, desde fatores de maior duração de atividade até medicamentos administrados por via subcutânea. Mas a inovação transformacional nesta área não cessou e o futuro afigura-se promissor em termos de opções terapêuticas para as pessoas com hemofilia.

A Terapia Genética

Estamos a viver numa época sem precedentes no que respeita a inovação tecnológica na medicina moderna, com a comunidade científica empenhada em desenvolver tratamentos cada vez mais eficazes e mais seguros. A terapia genética constitui uma nova abordagem ao tratamento, verdadeiramente transformadora, através da qual um gene funcional é transferido para o órgão-alvo do organismo, como por exemplo o fígado, com o objetivo de produzir uma proteína em falta ou que não funciona devido à mutação do gene, como os fatores de coagulação na hemofilia. Ao utilizar os genes como medicamentos, é possível direcionar o tratamento à origem de uma doença genética, potencialmente com apenas uma dose.
Como representado no esquema, a terapia genética consiste na introdução de um gene funcional ou terapêutico, ‘construído’ através de engenharia genética, num vetor específico. O gene terapêutico introduzido no vetor é uma cópia similar ao gene que causa a doença genética, que contém a mutação do gene corrigida, permitindo a produção correta da proteína em falta ou não funcional. O vetor será posteriormente administrado por via intravenosa ao doente, transferindo o gene terapêutico para o órgão-alvo envolvido na função afetada. Através de diversos mecanismos específicos no núcleo das células, estas usam esse gene terapêutico para produzir a proteína que estava em falta ou que não funcionava.

 Os Vetores

O sucesso da terapia genética depende fortemente de veículos eficazes – os vetores – para a transferência de genes para as células do corpo humano. Os vetores baseados em AAV (Vírus AdenoAssociado) são, atualmente, os mais utilizados nos ensaios clínicos de terapia genética. Apesar dos AAV serem vírus, a sua utilização na terapia genética não está associada a causar doença nos seres humanos pois são usados na sua forma recombinante, que não contém ADN viral, mas sim o gene funcional e outros elementos necessários para a função do vetor. Estes vetores, além de permitirem direcionar a terapêutica ao órgão específico, não integram o gene terapêutico no ADN do doente, ou seja, o gene terapêutico inserido fica no núcleo da célula separado do ADN do doente, o qual não sofre alterações.

Potencialidades e Desafios

A terapia genética é promissora para pessoas com doenças genéticas, mas não será, pelo menos para já, uma solução para todos os doentes e para todas as doenças. Atualmente, os ensaios clínicos com terapia genética têm-se focado maioritariamente em doenças monogénicas, isto é, doenças causadas por defeitos num único gene, em oposição às doenças multifatoriais (causadas por mais de um fator ou com mais de um gene envolvido). À medida que a investigação e avaliação destas terapias avança, vão sendo identificados desafios e também benefícios. Entre os potenciais benefícios incluem-se:
• A capacidade de os doentes passarem a produzir a proteína que antes eram incapazes de produzir ou de produzir corretamente
• O potencial para restaurar a função em tecidos ou células afetadas ou abrandar a progressão da doença
• O tratamento de utilização única, que pode potencialmente permitir a uma pessoa tratar a sua doença sem necessidade de medicação crónica
• O potencial para mudar substancial e positivamente a forma como as pessoas vivem com as doenças genéticas que as afetam

A Investigação da Pfizer está profundamente comprometida em compreender a eficácia e segurança de tratamentos potencialmente transformadores, como a terapia genética. A Pfizer tem atualmente vários ensaios clínicos de terapia genética a decorrer para várias doenças nomeadamente na hemofilia A, hemofilia B e distrofia muscular de Duchenne (DMD).

Quanto aos potenciais desafios relacionados com a terapia genética, estão atualmente a decorrer ensaios clínicos para responder a várias dessas questões, incluindo a duração do efeito de uma terapia genética específica e a resposta imunitária do nosso organismo ao tratamento com terapia genética. À medida que os estudos avançam, as respostas a estas questões irão sendo conhecidas, o que irá permitir que as agências do medicamento (como a EMA, o Infarmed e a FDA – U.S. Food and Drug Administration), possam avaliar a eficácia, a segurança e a qualidade destes medicamentos antes de serem aprovados e administrados aos doentes elegíveis. A elegibilidade para tratamentos de terapia genética será determinada por vários critérios, incluindo a avaliação da existência de certas doenças prévias ou a idade do doente no momento do tratamento. Será ainda necessário avaliar no sangue de cada doente a presença de anticorpos (parte da resposta do sistema imunitário a elementos considerados estranhos ao organismo, e como tal potenciais ameaças) específicos do vetor utilizado na terapia genética, os quais poderiam neutralizar o efeito do tratamento. Estes anticorpos podem existir em pessoas que tenham tido uma exposição prévia ao vírus na comunidade ou que já tenham recebido terapia genética e, por esse motivo, desenvolvido esses anticorpos. É imperativo que os ensaios clínicos, que são um pilar fundamental da investigação clínica e da utilização de medicamentos, forneçam a informação necessária sobre estes medicamentos baseados em terapias genéticas, de forma a determinar a sua eficácia e segurança.

Considerações Futuras

O primeiro medicamento baseado em terapia genética foi aprovado na Europa em 2012. Atualmente existem 6 tratamentos de terapia genética aprovados na Europa (nenhum com indicação para a hemofilia), dos quais apenas 2 utilizam vetores AAV. Até 2023, estima-se que possam existir até 30 medicamentos baseados em terapia genética aprovados pela EMA.

Tendo em conta os avanços destes novos tratamentos transformadores e a mais-valia na qualidade de vida que poderão vir a trazer aos doentes, é importante que todos os intervenientes comecem a discutir o acesso e a sua implementação clínica, de forma a estarmos preparados para o dia em que se tornem cada vez mais uma realidade.

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