Em 2020, foram diagnosticados cerca de 10.300 novos casos de cancro colorretal em Portugal, onde este é o segundo cancro mais frequente, ficando apenas atrás do da mama, nas mulheres, e da próstata, nos homens. Neste março azul, falámos com o Dr. Nuno Figueiredo – coordenador da Unidade de Cirurgia Geral do Hospital Lusíadas Lisboa – sobre este “problema sério e grave de saúde pública”, para perceber porque é que este cancro continua a matar mais do que os outros e conhecer o “tratamento personalizado” que permite salvar muitos doentes. O médico alerta para a importância do rastreio a partir dos 50 anos e deixa outro conselho relevante para todos: é importante “fazer uma alimentação saudável”, “uma alimentação variada, rica em fibras” e “em vegetais”, porque todos estamos em risco.
HealthNews (HN)- Qual é a etiopatogenia do cancro colorretal?
Nuno Figueiredo (NF)- O cancro colorretal é uma doença que se gera de modo multifatorial. Ou seja, tem múltiplos fatores predisponentes, sejam eles ambientais, portanto, a nossa alimentação, aquilo que ingerimos, aquilo que bebemos, os fatores tóxicos a quais estamos sujeitos, nomeadamente o tabaco, a ingestão do álcool e de alguns outros produtos constituintes dos alimentos, ou fatores predisponentes da própria hereditariedade, que herdamos dos nossos pais e da nossa família. Isto o cancro que acontece de modo esporádico.
Depois, há um tipo de tumores que têm a ver com alterações genéticas que já estão localizadas no óvulo e no espermatozoide, da mulher e do homem, e que são os tumores de transmissão hereditária, que é um bocadinho diferente do primeiro caso de que falei, e estes são cancros que se geram de alterações genéticas, que os pais transmitem aos filhos, e acontecem habitualmente em idades muito mais jovens – a partir dos vinte e poucos anos já pode existir -, embora estes sejam mais raros. Portanto, os mais comuns são aqueles de aparecimento esporádico e que são de causa multifatorial.
Ainda não se conseguiu identificar um fator e uma causa efeito, mas sabemos que há um conjunto de comportamentos – desde o sedentarismo, a falta da prática de exercício físico, uma alimentação rica em carnes vermelhas, em produtos derivados, às vezes em alguma proteína de leite da vaca -, há um conjunto de fatores na nossa alimentação ocidental que predispõe um conjunto de pessoas a que, mais tarde ou mais cedo, ao longo da vida, vão acumulando alterações a nível das células que revestem o intestino grosso e o reto, portanto, as células de revestimento deste organismo, e que promovem uma alteração destas células para surgir uma displasia e, mais tarde, uma neoplasia, ou seja, um cancro numa fase inicial. Este cancro, ao desenvolver-se sem que o nosso organismo consiga eliminar ou controlar esta progressão, vai originar, então, o cancro colorretal, nas suas formas, desde as mais iniciais até às mais avançadas. Infelizmente, com a falta de algum diagnóstico precoce, podemos ter um conjunto de doentes em que a primeira apresentação do seu tumor colorretal é não pelo tumor primário, mas com queixas de metástase, ou seja, já quando este tumor passou o órgão, passou o intestino grosso e o reto, e já está implantado a nível do pulmão, do fígado, etc.
HN- Quer falar-nos um pouco mais dos principais fatores de risco?
NF- Como lhe falei, a alimentação rica em carne vermelha, em alimentos processados, como é o caso dos chouriços e dos fumados; os fatores, por exemplo, derivados de algumas toxinas que existem em alguns pesticidas; o próprio tabaco; ingestão de álcool; hábitos mais sedentários; e a falta de exercício físico.
Os alimentos ricos em fibras são altamente protetores destas alterações, desta neoplasia.
Portanto, há muitos fatores que estão associados ao aparecimento do cancro, mas não podemos dizer que só por um fator… ou seja, nem toda a gente que fuma vai ter cancro do cólon, nem toda a gente que come chouriços e carnes processadas vai ter cancro do cólon e reto. Sabemos sim que pode estar associado a que isso aconteça.
Na generalidade, é importante é fazer uma alimentação saudável, fazer uma alimentação variada, rica em fibras, rica em vegetais, e que, obviamente, não deve ser restritiva. Portanto, devemos poder comer de tudo um pouco, desde que nada em exagero.
HN- Existem dados de prevalência que permitem descrever a realidade portuguesa relativamente a esta condição clínica?
NF- Mais do que isso, posso-lhe falar da incidência. A prevalência tem estado cada vez mais a manter-se, porque conseguimos tratar estes doentes e mantê-los vivos mais tempo. Ou seja, isto é uma doença que, apesar de continuar a ser letal e ter uma mortalidade elevada, permite, com os novos tratamentos, termos números elevados de doentes a sobreviverem ao cancro. Mas os dados mais recentes cifram-se em cerca de 10.300 novos casos em Portugal todos os anos. Em 2020, nós tivemos cerca de 10.300 novos casos diagnosticados de cancro colorretal em Portugal, que é, na prática, o segundo cancro mais frequente. No caso do homem, só é superado pelo cancro da próstata; na mulher, também é só superado pelo cancro da mama. Se associarmos estes dois tipos de tumor do cancro do cólon e reto, o cancro do cólon e reto é o primeiro em termos de mortalidade, dado que a próstata e o cancro da mama têm mortalidades mais baixas. Ou seja, neste momento, podemos dizer que o cancro colorretal é um problema sério e grave de saúde pública.
HN- Que grupos da população têm um risco acrescido?
NF- Pessoas que têm na família história de tumores do tubo digestivo ou até mesmo pessoas que tenham cancro colorretal na família devem iniciar o rastreio a partir de cerca dos 40/45 anos. Hoje em dia, qualquer português acima dos 50 anos deveria iniciar um programa de rastreio de cancro colorretal, por estas razões que lhe digo. Ou seja, não há grupos específicos em risco. Toda a população está em risco, homens e mulheres. E, por outro lado, sabemos que é um dos cancros facilmente controláveis e evitáveis. A própria colonoscopia pode ser um exame de diagnóstico, de rastreio, e, ao mesmo tempo, de tratamento, porque, se for uma lesão muito pequena, ainda na forma de um pólipo, uma pequena alteração da mucosa do intestino, pode ser imediatamente removido e, portanto, interrompida a progressão dessa neoplasia ainda muito inicial.
HN- Quais os sinais e sintomas a que se deve estar atento?
NF- O sinal e o sintoma que é mais frequente acontecer nestas situações de cancro do cólon e reto varia um pouco da localização no intestino.
Os tumores do cólon e reto que estão localizados mais distalmente, mais próximos do ânus, apresentam-se muitas vezes por hemorragias, ou seja, por perda de sangue nas fezes. Isto muitas vezes é duvidoso porque também é muito frequente uma situação que não tem nada de malignidade, que é o caso da doença hemorroidária, que também se apresenta por queixas de retorragias, ou perdas de sangue pelas fezes. E, portanto, há aqui uma dúvida que muitas vezes é terrível, porque as pessoas acham que têm uma doença hemorroidária, menosprezam esses sintomas e só quando a doença continua a avançar é que, depois, procuram o médico. Portanto, os tumores do lado esquerdo, mais próximos do ânus e do reto, apresentam-se muitas vezes com alterações na evacuação e por perdas de sangue visíveis.
O grande problema são os tumores mais proximais, ou seja, os do lado direito do intestino grosso, que podem sangrar sem que seja visível nas fezes, porque o sangue acaba por ser digerido e mistura-se com as fezes, e não há uma deteção precoce. Esses manifestam-se por falta de força e por anemia. Aí também é um sinal de alarme, devendo motivar os portugueses a procurarem apoio especializado e fazerem o seu rastreio do cancro do cólon.
HN- A colonoscopia é um exame bastante fiável?
NF- O exame da pesquisa de sangue oculto nas fezes tem dois tipos de possibilidade. Há o teste imunológico de sangue nas fezes, e esse é o mais fidedigno, porque, ao existir a deteção das tais proteínas do sangue nas fezes, obriga sempre a confirmar por colonoscopia se existe tumor ou não e onde é que ele está localizado. É um teste sensível, ou seja, deteta muito bem qualquer alteração do intestino, o que não quer dizer é que seja muito específico. Ou seja, o facto de ele ser positivo obriga-nos sempre a comprovar que existe realmente o cancro colorretal por método de colonoscopia. E o grande problema é a capacidade de responder a tempo útil aos necessários exames de colonoscopia. Portanto, este teste imunológico fecal é muito sensível e é um bom método de rastreio; obriga é, muitas vezes, a ter que se fazer um conjunto grande de exames de colonoscopia comprovatórios. Mas isto é fundamental porque nós não podemos estar a sujeitar toda a população a colonoscopias, que também são desnecessárias.
Mas isto é a nível de cuidados de saúde primários. Porque, se a pessoa tiver na família história anterior ou quiser fazer realmente um rastreio de colonoscopia, pode dirigir-se diretamente a uma instituição e fazer a sua colonoscopia de rastreio.
A colonoscopia normal só precisará de ser repetida cinco a sete anos depois.
HN- Tendo em conta que um dos entraves à deteção precoce é o receio da colonoscopia, quão relevante seria o desenvolvimento e a aplicação prática de métodos de diagnóstico inovadores, como as biópsias líquidas?
NF- Não posso dizer que isso não seria o desejável, a procura de um método de diagnóstico que fosse o mais sensível e específico e, ao mesmo tempo, menos invasivo – a biópsia líquida trata-se apenas de deteção no sangue de partículas derivadas ou partículas excretadas pelos tumores que permitam identificar claramente, primeiro, se existe ou não um tumor no organismo e, em segundo lugar, preferencialmente, qual é que é a origem deste tumor, para irmos imediatamente identificar a zona. Isso será o futuro, e eu penso que é para aí que vamos caminhar. Mas, neste momento, ainda estamos bastante longe dessa realidade. Existem alguns métodos, neste momento, inovadores, até em ensaio clínico, para fazer esta biópsia líquida, mas nenhum deles está comprovadamente suportado por evidência científica para poder substituir a colonoscopia total, aquela feita pelo gastroenterologista. Por outro lado, há um caminho se calhar mais imediato, que será a pesquisa de produtos tumorais nas fezes. É como se fosse uma biópsia líquida, mas aplicada às fezes. Isso está a ser já investigado a nível internacional. Mas penso que, apesar de ser um futuro muito promissor, estamos ainda muito aquém dessa realidade e não devemos abandonar, para já, o teste imunológico fecal e a colonoscopia.
HN- Que soluções apontaria para melhorar o rastreio?
NF- Existem, por exemplo, alguns metabolitos excretados até pela própria respiração que estão a ser investigados como sendo promissores. Ou seja, sabe-se que pequenas partículas que nós expiramos, ou seja, secretamos pelos pulmões e vão misturadas com o ar que expiramos, podem ser outros métodos possíveis de diagnóstico e de rastreio de tumores; a biópsia líquida de que falámos; a biópsia líquida aplicada às fezes e aos produtos excretados pela urina; há um conjunto de novos metabolitos e novos fragmentos de DNA tumoral que estão a ser testados. E, mais tarde ou mais cedo, os desenvolvimentos a nível da ressonância magnética ou até mesmo de TAC de baixas doses, não aplicado, obviamente, ao cancro colorretal, mas aplicado a outro tipo de tumores, podem começar a ser outros métodos de diagnóstico inovadores para se poder detetar precocemente este tipo de tumores. Mas, no diagnóstico, ainda estamos muito longe do que pode ser o futuro. Mas penso que o caminho será sobretudo a nível da biópsia líquida e de outros produtos de destruição celular do tumor, que são secretados dos nossos órgãos secretores e também pela respiração.
HN- E quanto ao tratamento?
NF- Hoje em dia, é possível oferecer tratamentos curativos à grande maioria destes doentes. Através de uma abordagem multidisciplinar, que envolve cirurgiões, gastroenterologistas, oncologistas médicos, radioncologistas, etc., nós temos ao nosso dispor um conjunto de armas, não só cirúrgicas, mas também biológicas. Há um conjunto de tratamentos inovadores, quer a nível da cirurgia, quer da radioncologia, quer mesmo da imunoterapia e da oncologia médica, que nos permitem, mesmo em estádios muito avançados e invadindo muito pouco o doente – criando muito pouca mutilação ao doente -, conseguir tratar, controlar e erradicar esta doença maligna.
A colonoscopia precoce permite em muitos casos fazer uma cirurgia endoscópica através do tubo digestivo e ressecar os tumores muito iniciais. A cirurgia robótica, laparoscópica, de que dispomos hoje em dia, também nos permite, através de pequenas incisões de 5 milímetros e de 1 centímetro, fazer uma operação que antigamente se tinha que fazer de barriga aberta e com muitos dias de internamento – hoje, é possível fazer estas intervenções com pouca dor e com apenas três a quatro dias de internamento. Em alguns dos casos destes tumores colorretais, tecnologias muito avançadas de radioterapia permitem-nos erradicar, apenas com radio e quimioterapia, estes tumores sem que haja necessidade de serem operados. E agora, o conjunto mais recente de novos fármacos, como é o caso da imunoterapia, que nos permite, através de pequenas moléculas dirigidas a esses tipos de tumores, destruir e eliminar apenas com tratamentos médicos alguns tipos de cancro.
HN- Portanto, é um vasto leque de possibilidades que é preciso adaptar ao doente.
NF- É cada vez mais realizado um tratamento personalizado, uma abordagem multidisciplinar oncológica personalidade para o doente, que é adaptada ao sexo, à idade, ao tipo de tumor, à biologia molecular desse tumor. É uma personalização do tratamento oncológico para cada doente.
HN/RA
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