António Alvim Médico especialista em MGF

O Problema dos “Sem Médico de Família” e como o resolver

05/22/2021

O problema e a causa

Neste momento existirá um déficit de 454 Médicos de família o que se traduz nos cerca de 900 000 utentes sem Médico de Família conforme foi reconhecido ontem pela Ministra da Saúde.

E a primeira má notícia é que o número de internos que se irão formar nos próximos três anos não supera o grande número (1333) de MFs que se vão aposentar nestes 3 anos.

A segunda má notícia é que para além das saídas previstas por aposentação, existirão saídas por outros motivos : por doença, por saída para o setor privado ou para o estrangeiro (no preciso momento em que escrevo estas linhas entrou-me no mail uma oferta de uma empresa de recrutamento médico para um lugar em França remunerado com 10 00 euros mensais) e por abandono da profissão.

A terceira e terrível má notícia, e que é culpa do governo e na pouca atenção que dá aos Cuidados de Saúde Primários, está naquilo que me escreveu uma recém especialista.

Confesso que estou numa fase de fazer algumas decisões importantes e a minha ideia inicial sempre foi permanecer no SNS, ideia que infelizmente se tem desvanecido talvez por uma série de fatores que incluem, a falta de reconhecimento pelo trabalho que desenvolvemos, a desarticulação entre equipas, a divergência de formas e métodos de trabalho e a remuneração desajustada em relação à responsabilidade que o nosso trabalho exige. 

Na mesma semana que fiz exame de especialidade, fui igualmente convidada por 3 privados diferentes para iniciar consulta, com projetos ambiciosos, bem liderados, com equipas com um objetivo comum e com uma sedutora remuneração.

E na sequência esta recém especialista, apesar de estar no lugar cimeiro no concurso de Outubro passado, podendo escolher o lugar que quisesse, optou por ficar fora do SNS. Foi um dos 122 (30%- do total de médicos de família em concurso) que optaram por ficar de fora do SNS no concurso. 238 000 utentes continuarão assim sem médico de família

A manter-se esta tendência (que é reforçada por a maioria dos internos estar no Norte, e com as suas vidas já instaladas, quando a maioria das vagas se encontra na ARSLVT) é previsível que nos próximos 3 anos passemos dos atuais 900 000 utentes sem médico a nível atual para 1 800 000  (o dobro), o que será uma realidade tremenda.

Na ARSLVT passaremos de para 620 000 sem médico de família para cerca de 900 000

Ao contrário da promessa/compromisso deste Governo de chegar ao fim desta legislatura sem utentes sem medico de família a verdade é que consegue chegar ao fim da legislatura duplicando o número com que partiu.

E estando numa segunda legislatura não pode o Governo alegar que que quando assumiu aquele cmpromisso desconhecia os números de entradas e saídas previstas.

 O que aconteceu então?

O governo cometeu o erro de suspender o acesso das Unidades de Saúde Familiar ao Modelo B

Modelo em que os médicos, enfermeiros e Secretários Clínicos têm autonomia organizativa e uma remuneração diferenciada, em função do cumprimento de indicadores contratualizados. Uma remuneração excelente e que lhes permite ganhar o dobro em relação aos Colegas que estão no modelo tradicional com o vencimento da tabela salarial do ACT.

Modelo B que não só permitiu o aparecimento do Modelo USF com uma grande adesão dos profissionais a este Modelo, como promoveu a um enorme salto na qualidade dos Cuidados de Saúde Primários.

Modelo B que foi um tremendo chamariz para a escolha do Internato de Medicina Geral e Familiar e para a adesão ao Modelo USF. Só que, logo quase no início da Reforma de 2006, se “inventou” que para se chegar ao Modelo B era preciso estagiar primeiro no Modelo A. Modelo A que tem a autonomia  e a exigência do Modelo B mas o vencimento da carreira. E o acesso ao Modelo B só era possível após uma avaliação que certificasse que a USF cumpria todos critérios de uma grelha de avaliação extremamente exigente.

Foi o chamariz do Modelo B que não só atraiu os Médicos para a Carreira de MGF como permitiu o entusiasmo da Reforma e adesão massiva dos profissionais a este modelo: 2/3 dos médicos de família estão em Modelo USF

Mas apenas 1/3 dos Médicos de Família está em Modelo B (a maioria provém das candidaturas iniciais). O outro terço está a sentir-se enganado e frustrado. Sente que está a pedalar atrás de uma cenoura que, percebe agora, nunca vai chegar. Por um lado, avaliações extremamente exigentes intuídas como orientadas propositadamente pela Administração para impedir o acesso ao Modelo B. Por outro um sistema de quotas de acesso ao modelo extremamente restritivo que faz com que uma série de USFs A, que superaram todas as exigências e mais alguma para serem certificadas continuem em Modelo A. E houve anos em que não houve entradas no Modelo B. 2020 foi uma delas !

No fim de 2019 a Ministra da Saúde prometeu que daí em diante todas as USFs de Modelo A com parecer técnico positivo passariam a Modelo B no ano seguinte.  Mas, e aqui um grande Mas, que primeiro teria de ocorrer uma revisão do sistema remuneratório do Modelo B, a realizar em 2020. Acontece que em 2020 nada aconteceu e nenhuma proposta de revisão foi apresentada. O que aliás é reconhecido no recente despacho conjunto do Ministério da Saúde de do Ministério das Finanças em que se determina o número de USFs a constituir em 2021 e o número de Modelos A que passam a B

Nessa medida, o Despacho n.º 2533/2020, de 14 de fevereiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 38, de 24 de fevereiro de 2020, determinou o número de USF de modelo A a constituir no ano de 2020, assim como estabeleceu que o número de USF a transitar, também em 2020, do modelo A para o modelo B fosse estabelecido por despacho conjunto dos referidos membros do Governo, após a aprovação do novo modelo de pagamento pelo desempenho para as USF de modelo B, a apresentar pela Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde e a negociar nos termos da lei.

Contudo, em março de 2020, a declaração da COVID-19 como emergência de saúde pública internacional e a situação epidemiológica que abateu sobre o País e que se mantém, não permitiu concretizar a negociação necessária à aprovação do referido modelo de pagamento, sendo esta uma matéria que impõe condições que se não consideram reunidas neste momento.

1 – O número de unidades de saúde familiar (USF) de modelo A a constituir no ano de 2021 é de 20.

3- Até 31 de dezembro de 2021, transitam do modelo A para o modelo B até 20 USF.

 Número muito aquém das USFs com parecer técnico aprovado e mesmo assim, aquelas 20 só passarão a Modelo B no final do ano, e se houver cabimento orçamental.

Importa dizer que ao contrário do que o Ministério afirma a Pandemia em nada impediu ao Ministério de fazer, apresentar e negociar uma proposta de revisão do Modelo Remuneratório do Modelo B. A qual, aliás, nem seria necessária se a Administração interpretasse corretamente a lei e a fizesse aplicar.  É assunto que se resolve com trabalho de casa, troca de documentos por mail e, se necessário, reuniões por via digital.

Eu próprio, um dos pré-pioneiros do Modelo- que  fui a única pessoa a dizer que a Administração não estava a fazer cumprir a lei  e estava a permitir que a autonomia das USFs escorregasse da bandeira “USFs centradas nos utentes” para uma realidade de “USFs centradas nos interesses dos profissionais” de forma que aquela estava a pagar 50 milhões de euros dos contribuintes, por ano, sem a devida contrapartida;  em horas que não constavam nos horários aprovados e não eram feitas- deixei  aqui uma proposta de correção do Modelo B de forma a que ele fosse aplicado na maneira como tinha sido pensado e justificado.

A verdade é que no fim de 2019 a Ministra da Saúde “despediu” por inteiro a Equipa, nomeada pelo seu antecessor, que no Ministério superentendia a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários (Coordenação da Reforma do SNS- Cuidados de Saúde Primários) e chamou a si diretamente esta área, desconhecendo-se quem agora lhe faz o apoio.

Acresce que o programa de Governo do PS fala em generalização do Modelo USF mas não fala em Modelo B. O que faz pressupor que para o governo o Modelo B é mesmo para descontinuar.

O grave disto é que os recém especialistas fizeram o seu Internato em USFs do modelo B  com boas instalações, bem organizadas  e bem remuneradas, onde não se atendem utentes sem médico,  apenas os inscritos nas listas dos Médicos da USF; quando  as vagas lhes oferecem são para lugares em UCSPs com instalações degradadas (o governo apostou em dar primazia em instalações novas ou renovadas às USFs e deixou para trás as UCSPs)  , mal organizadas, com listas grandes e para além delas a obrigação de atender os doentes sem Médico.

Percebendo que o Modelo B é uma miragem inatingível e realidade que se lhes oferece muito negra, não espanta que deixem os concursos desertos tendo o resultado acima descrito de, em vez dos utentes sem médico acabarem, bem pelo contrário, duplicarem.

E isto, como acima se demonstra, devido às erradas decisões e orientações políticas deste Governo.

Como resolver o problema dos sem médico de família?

Este problema pode ser resolvido com a conjugação de 3 políticas visando:

– mais médicos na rede do SNS

– mais utentes por médico

– menos utentes da rede do SNS

Estas políticas só são viáveis se forem executadas com o apoio voluntário dos intervenientes

Mais médicos no SNS ou a trabalharem para o SNS

– Criando condições para que o ingresso no SNS se torne atraente. Quer voltando a abrir o Modelo B, tornando o seu acesso uma realidade e não uma miragem, quer retomando o acordo feito por Leonor Beleza com os médicos, disponibilizando o regime das 42 horas com exclusividade (e respetivo subsídio) que foi a base estruturante da rede médica de cuidados de saúde primários e que foi abolido em 2009 por um Governo do PS.

– Criando condições para os médicos fora do SNS, ou porque o não quiseram integrar ou porque se aposentaram, possam trabalhar para o SNS. O Modelo C, em que, tal com acontece por exemplo no NHS inglês, as  unidades são dos Profissionais em regime de contratualização com o SNS, num regime muito parecido com o modelo B (mais um x para os gastos com as instalações) , seria a forma ideal. Até porque já está legislado. Falta apenas ser regulamentado.

 – mais utentes por médico

Criando incentivos para, em todos os modelos, os médicos voluntariamente aumentarem as suas listas.

menos utentes da rede do SNS

Criando condições para quem tenha Médico de Família no sistema privado possa prescindir do Médico de Família na rede pública.

Como?

Antes do mais, os Lares deverão passar a ser encarados como também instituições de saúde e dotados de uma direção clínica, com responsabilidade e autoridade, que se responsabilize pelo seguimento, financiado pelo SNS, dos utentes, que assim poderão prescindir da inscrição naquele que era o seu médico de família mas a que na realidade já não têm como recorrer.

Mas, sobretudo, possibilitando que os Médicos de Família Privados possam, sem quaisquer encargos para o SNS, se articular com este. Designadamente que possam prescrever exames complementares de diagnóstico (análises, exames de imagem, de cardiologia…) e tratamentos de fisioterapia comparticipados pelo SNS. Tal como fazem os seus colegas no SNS e já acontece há muitos anos com a prescrição dos medicamentos (medida aliás de um governo do PSD e por mim na altura pedida ao ministro Paulo Mendo que me disse que não seria possível , mas que implementou um ano depois. Hoje seria impensável que assim não fosse)

Sobretudo, numa primeira fase, aos utentes que voluntariamente optem por, às suas custas, ter um Médico de Família privado em detrimento de um Médico de Família no SNS.

Deverá ainda ser possível a estes médicos de família privados referenciaram para as instituições do SNS e passarem Certificados de Incapacidade para Segurança Social (baixas) a estes utentes que tenham feito este opting out específico.

Ou seja, permitir que quem opte voluntariamente por um Médico de Família no Sistema Privado não perca nenhum dos seus outros direitos.

De facto, muitas pessoas têm o seu Médico de Família no Sistema Privado, mas têm que se manter como utentes de um Médico de Família do SNS para poder ter acesso a MCDTs pagos pelo SNS e a baixas para a Segurança Social. Têm assim Médicos de Família em duplicado quando outros não conseguem ter um.

Numa semana em que se comemorou o Médico de Família e em que se descobriu a carência que existe no SNS, sobretudo na região de Lisboa, estas medidas permitiam descobrir que afinal existem Médicos de Família suficientes.

Porque, e isto é o mais importante, ser Médico, e sobretudo ser Médico de Família, é independente do contexto em que o Médico se insere. Só a cegueira ideológica do estatismo reinante o não permite ver.

 

 

 

2 Comments

  1. jose ribeiro

    Uma excelente opinião que a meu ver, como cidadão, só peca por insistir no modelo USF, seja A ou B. Acredito que e “estalinização” do SNS origina os problemas referenciados no artigo. É mais que tempo de avançar para um novo Modelo, o CRCSP, centro de referência em CSP, onde a “Accountability” (prestação de contas) centrada no utente (prevenção)/doente(resultados)/município seja o cerne da solução. Enquanto a ideologia estatizante de muito poucos, liderar a saúde de todos, teremos um SNS fraco. Podemos ter um SNS forte sem retirar papel ao Estado, apenas colocando o MFAM/Doente na liderança. Obrigado.

  2. João Sousa

    não entrarei aqui no debate do modelo C ou no acesso a comparticipação de MCDT a atores sujeitos a regras de mercado e doctor shopping.

    mais utentes por médico não se consegue, de modo sustentável apenas com incentivos (que atenção, são precisos).
    requer a contratação de mais profissionais de outras profissões da saúde, para números razoáveis.
    Por exemplo, uma aproximação aos racios de enfermeiros, secretários, assistentes sociais, psicólogo, assistentes ocupacionais, fisioterapeutas, dentistas…
    assim o conseguem no NHS no UK.

    passa também pela desburocratização de processos vários (como os CIT, que refere, e tantos outros).

    pela melhoria da circulação e integração de informação nos sistemas informaticos.

    pela melhor articulação entre cuidados entre CSP e hospitais… em privados.

    pela atualização dos vencimentos. passaria por exemplo pela correcção de existirem licenciados a receber abaixo de tal, pela remoção de cotas para especialidades de enfermagem, pela revisão da abominação que é o SIADAP, por um sistema funcional de progressões que não seja uma mera sucessão de impugnações…

    quiçá por “principescos” aumentos que meramente anulem as perdas pela inflação das últimas decadas (na base e nos incentivos)…

    e sobre as desvinculaçoes de recém especialistas importa ver onde acontecem.
    muitos estão a sair no Norte e o que se oferece noutros locais não parece motivar estes profissionais a desenraizar-se (por vezes com conjugue e filhos) para recomeçar a vuda noutro local, habitualmente sem rede familiar ou social.
    perceber que não se consegue mobilizar para a mais carenciadade de todas as ARS – LVT.
    que é também a mais cara, e talvez das que tem menos hipóteses oferece de integrar um bom projecto de USF menos ainda em B.
    importa destravar o B, mas também aproveitar a municipalização para tentar minimizar a repulsa de LVT.

    Peço desculpa por qualquer erro, a escrita em smartphone é mais difícil

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