Em tempos de pandemia, as equipas dos cuidados de saúde primários continuam a fazer um esforço enorme para manter a vigilância dos grupos de risco, entre os quais se incluem os doentes hipertensos. Durante alguns meses, o acesso poderá ter sido diferente, mas “estivemos sempre cá”, garante Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF)
HealthNews – Qual é o peso da hipertensão nas consultas dos médicos de família?
Nuno Jacinto (NJ) – O acompanhamento da hipertensão, e de todos os fatores relacionados, tem um peso importante ao nível dos indicadores e das atividades específicas das unidades dos Cuidados de Saúde Primários.
A percentagem de hipertensos nas nossas listas oscila entre 30 e 40%, dependendo das regiões do país. Estes valores estão em linha com aqueles que são referidos na literatura nacional e internacional, segundo os quais cerca de um terço da população é hipertensa. E o que é um facto é que muitos de nós, para fazermos a correta vigilância destes doentes, acabamos por lhes dedicar grande parte da nossa atividade assistencial e até períodos específicos de consulta.
HN – Essa atenção é justificada pelas consequências da hipertensão não controlada e o impacto da doença cardiovascular no nosso país?
NJ – Exatamente por esses motivos, a hipertensão é uma área que tem de ser vista com muito cuidado e ser bem acompanhada. Convém recordar, e isso é apanágio dos médicos de família, que os doentes hipertensos não têm somente tensão alta mas também outras patologias associadas – diabetes, dislipidémia, alterações renais, obesidade, etc. – que obrigam a uma vigilância mais apertada.
Os médicos de família não veem o hipertenso de uma forma isolada mas o que é um facto é que ele existe como tal. A hipertensão precisa de ser controlada devido à elevada carga de mortalidade cardiovascular que existe em Portugal, sobretudo aquela que está relacionada com os acidentes vasculares cerebrais e que, na esmagadora maioria dos casos, acontece em doentes hipertensos.
É fundamental que haja um controlo e uma vigilância adequada para diminuir a carga de doença e as suas consequências.
HN – O controlo dos doentes hipertensos faz parte da contratualização das Unidades de Saúde Familiar (USF) e das Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). Os bons resultados diminuíram devido à pandemia?
NJ – Curiosamente, o impacto sentido nas USF e nas UCSP não foi tão grande como se poderia pensar. Isso é consequência do enorme esforço feito pelas equipas para tentarem manter a vigilância desses utentes – sobretudo, dos grupos de risco e vulneráveis, em que se enquadram os doentes hipertensos – seja por contacto telefónico, por e-mail ou por marcação de consultas presenciais, quando tal já foi possível.
É claro que terá havido casos de doentes em que a vigilância não se processou como era suposto acontecer. Mas, como referi, o impacto não é tão significativo como se pensava. Varia entre unidades, como é óbvio, mas a verdade é que o esforço das equipas teve alguns resultados.
HN – Recentemente, no âmbito do Dia Mundial do Médico de Família, falou-se bastante na questão do número de utentes sem médico de família atribuído. Qual é a situação?
NJ – Os médicos de família estão, como sempre estiveram, empenhados em acompanhar os seus utentes o melhor que podem e sabem. As dificuldades e a exaustão são cada vez maiores porque nunca paramos de trabalhar nem nunca fechamos as portas. As formas de acesso poderão ter sido diferentes mas estivemos sempre cá.
Fomos chamados a realizar múltiplas atividades relacionadas com a Covid-19 e assim continuamos. Neste momento, quase toda a vacinação está sob a nossa responsabilidade e isso é algo que nos tem exigido muito tempo e também muitos recursos.
Os médicos de família continuam com uma grande vontade de acompanhar os seus doentes, sabendo o que precisam, mas deparando-se com inúmeras dificuldades, nomeadamente ao nível dos recursos humanos. Nalgumas regiões do país, como na ARS de Lisboa e Vale do Tejo, não existem médicos de família suficientes. Além disso, temos que lidar com a falta crónica de recursos materiais, instalações deficitárias, sistemas informáticos que não colaboram connosco e défice de outros profissionais nas unidades de saúde – sobretudo, enfermeiros e assistentes técnicos.
O facto de não existirem médicos de família suficientes para todos os utentes é algo que nos aflige muito mas continuamos sem antever a resolução deste problema, ao contrário do que seria desejável.
HN – Enquanto presidente da APMGF, quais são os seus objetivos e de que forma poderão contribuir para resolver esta situação?
NJ – Os objetivos da APMGF incidem em três grandes eixos: tornar a APMGF uma associação muito mais aberta e participada, em que as pessoas tenham voz e onde sintam que vale a pena participar em todas as atividades.
A formação e a investigação é outro ponto fundamental. Por esse motivo, todos os nossos eventos foram redesenhados e adaptados aos novos tempos que vivemos.
O terceiro eixo diz respeito à defesa intransigente da Medicina Geral e Familiar, ao seu papel central no SNS e em todo o sistema de saúde. A defesa da qualidade e do rigor do nosso exercício implica termos as condições para podermos trabalhar de forma digna, tal como os nossos utentes merecem. Implica também a existência de carreiras adequadas, dimensões de listas que se adequem à situação de cada local e de cada médico de família, e condições para fazermos aquilo para que fomos treinados: acompanhar os nossos doentes ao longo de todas as fases da sua vida, em vez de continuarmos afogados em tarefas burocráticas e outras que, claramente, não são da competência dos médicos de família.
A pandemia e a necessidade de manter o mesmo nível de cuidados aos doentes, nomeadamente com patologia crónica, tornou ainda mais visível a necessidade de reforço da MGF?
NJ – O problema é que, embora se afirme a importância da MGF no SNS, continua a prevalecer uma visão muito hospitalocêntrica.
A Medicina Geral e Familiar precisa de ter as condições de trabalho que referi porque quando as coisas se tornam mais difíceis e complicadas, como agora, temos de dispor dos recursos necessários.
Neste momento, ao alocarmos uma grande fatia dos recursos dos CSP à vacinação, estamos a resolver um problema criando outro, ou seja, a “destapar” novamente os cuidados aos doentes crónicos e aos grupos vulneráveis.
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