A doença a que se convencionou chamar mieloma múltiplo é uma neoplasia maligna com origem em células do sangue. Essas células, chamadas plasmócitos, circulam no sangue e também se podem encontrar na medula óssea e nos gânglios linfáticos. Os plasmócitos são células derivadas de um tipo de linfócitos que são identificados como sendo os linfócitos B. Os outros são designados de linfócitos T. Os linfócitos B, quando estimulados, podem diferenciar-se em plasmócitos que são as células produtoras de anticorpos.
Quando os plasmócitos sofrem uma transformação cancerosa começam a produzir anticorpos ou partes de anticorpos em excesso e sem utilidade. Muitas vezes há, simultaneamente, uma redução da produção de anticorpos normais. Assim, a primeira consequência mais evidente do mieloma é a diminuição de defesas contra infeções, a imunossupressão. Ao mesmo tempo, aparece anemia, com causas variadas, e há destruição dos ossos, por via da produção de uma substância que inibe os mecanismos habituais de reparação continuada dos ossos. Os ossos surgem com “buracos” a que se chama osteólise. Dada a eliminação de anticorpos e partes de anticorpos pelos rins, estes podem “entupir” e daí resulta que o mieloma curse muitas vezes com insuficiência renal.
Quer isto dizer que o doente típico com mieloma é alguém, habitualmente com mais de 60 anos, que se queixa de cansaço inexplicado e progressivo e dores ósseas, quase sempre com início na coluna vertebral, mais tardiamente com fraturas espontâneas, não raras vezes com história de infeções respiratórias graves e mais frequentes nos últimos meses. São estes os doentes que não podem escapar ao sistema de saúde e que merecem a especial atenção de médicos de medicina geral e familiar. Com análises simples, tais como um pedido de electroforese de proteínas do sangue, doseamento de imunoglobulinas e de cadeias leves livres e imunofixação sérica, o diagnóstico pode ser suspeitado. Mais ainda em pessoas com familiares diretos, irmãos, pais ou filhos, com esta doença.
É uma doença rara, com cerca de 800 novos casos ano, talvez mais agora, mas em que nem todos necessitam de tratamento imediato. Não podem é ficar esquecidos e abandonados à sua sorte, entre mezinhas, analgésicos, anti-inflamatórios e terapias inúteis.
O tratamento do mieloma evoluiu muitíssimo nas últimas 3 décadas. No final dos anos 80 tínhamos 4 fármacos, pouco mais. Hoje há dezenas de medicamentos que aliviam o sofrimento e prolongam a vida destes doentes, por mais do que uma dezena anos. Passámos dos citostáticos clássicos (melfalano e ciclofosfamida) para modeladores da imunidade (talidomida, lenalidomida e pomalidomida) e disruptores do funcionamento celular (inibidores de proteassoma como os bortezomib, carfilzomib e ixazomib ou inibidores das exportinas como o selinexor). Hoje já usamos anticorpos, exatamente o que a célula doente não produz como devia, fabricados em laboratório e dirigidos aos plasmócitos (elotuzumab, daratumumab e izatuximab). E esses anticorpos já podem ir “armados” com uma substância tóxica para os plasmócitos doentes (belantamab mafodotina) ou terem dois pontos de “atracagem” a células, podendo unir os plasmócitos doentes aos linfócitos T que os podem matar (teclistamab e taqueltamab). E há linfócitos T geneticamente modificados, as células CART (idecabtagene vicleucel e ciltacabtagene autoleucel) ativadas em laboratório para eliminarem os plasmócitos, entendidas e reguladas como medicamentos. Alguns destes medicamentos ainda aguardam aprovação para poderem ser usados no SNS, casos do selinexor, belantamab e CART anti-mieloma, ou na UE, como é o caso de um melfalano modificado, o melflufen. Mas tudo, desde que eficaz, fará o seu caminho. Outros medicamentos virão, havendo uma panóplia de muitas centenas de possibilidades em investigação de que surgirá mais uma meia dúzia de boas notícias.
Em todo o caso, é importante que, além do pressuposto de diagnóstico atempado, também haja empenhamento por parte das autoridades reguladoras nacionais e dos laboratórios produtores, para que se consiga a aprovação dos medicamentos inovadores em tempo útil e com preço comportável para a maioria dos doentes que possam precisar deles. Com o esforço e ajuda de muitas pessoas e entidades, a cura do mieloma será possível e mais cedo que eu próprio imaginei.
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