António de Sousa Uva Médico e Professor

Suberose: uma doença profissional descrita por portugueses

08/04/2023

Quando pensamos em doenças descritas por portugueses, quase sempre nos vem à memória a polineuropatia amiloidótica familiar, vulgarmente conhecida por paramiloidose ou doença de Corino de Andrade (popularmente a doença dos pezinhos). Como se sabe, é uma forma de amiloidose transmitida geneticamente e que foi identificada e descrita pela primeira vez, nos anos de1950, por Corino de Andrade, daí o seu nome. 

Raramente nos lembramos de outra doença, a Suberose, que foi descrita por Vinte-e-Um Mendes em 1947 e por Lopo Cancella de Abreu em 1955, ambos igualmente médicos portugueses, que chamaram a atenção para a possibilidade da associação entre a exposição a poeiras de cortiça e a ocorrência de sintomas respiratórios. Estudos posteriores, entre outros, de Ramiro Ávila (que estiveram na origem do seu doutoramento), Thomé Vilar, Telles de Araújo e Cortez Pimentel foram decisivos para o esclarecimento de uma multiplicidade de aspetos epidemiológicos e patogénicos da suberose, incluindo os do foro imunológico, que parecem adquirir o maior protagonismo na etiopatogenia da doença.

Clinicamente a suberose caracteriza-se por um quadro subagudo ou crónico de alveolite alérgica extrínseca, que pode evoluir para a fibrose pulmonar, com envolvimento brônquico muito frequente traduzido em sintomatologia de tosse, expectoração e outra sintomatologia asmatiforme e, por vezes, queixas de irritação nasal, crises esternutatórias e rinorreia. Nos trabalhadores com sinais sugestivos de doença do interstício pulmonar os sintomas dominantes são a tosse, a dispneia progressiva, o emagrecimento e, nos surtos agudos, os acessos febris.

Um dos primeiros estudos epidemiológicos realizado em fábricas de cortiça foi publicado em 1973 a partir da aplicação de um questionário de sintomas e da realização de exame clínico, exame espirométrico e microrradiográfico e, ainda, a pesquisa de precipitinas para o Penicillium Frequentans nos trabalhadores expostos. Com esses critérios identificou-se, então, uma prevalência de 19% de operários portadores de Suberose, isto é, cerca de um em cada cinco trabalhadores expostos.

No nosso caso concreto, nos nossos primeiros anos de atividade clínica e no decurso do serviço médico à periferia, a identificação de alguns casos de Suberose em trabalhadores de uma fábrica de cortiça no sul de Portugal que se manifestaram como “síndromes gripais” recidivantes, constituíram o verdadeiro “gatilho” para a aquisição de conhecimentos e a especialização em Medicina do Trabalho. 

Com uma formação pré-graduada em que a Medicina do Trabalho em que nem eram afloradas tais manifestações clínicas, constituíram, à data, intrigantes (e também desafiantes) casos clínicos que, estudados com maior profundidade num Hospital Universitário se vieram a revelar quadros de Suberose, todos ocorridos num definido sector fabril da referida unidade fabril. Qual “toque de Midas”, assim nasceu a curiosidade pela Patologia e a Clínica do Trabalho que determinou, primeiro a motivação para uma formação pós-graduada em Medicina do Trabalho e, posteriormente, a escolha dessa especialidade médica e, posteriormente, o seu ensino e investigação.

Ainda que os casos de Suberose não sejam propriamente frequentes a sua ligação à Medicina Portuguesa, designadamente à Medicina do Trabalho e à Pneumologia, bastaria para lhes ser atribuída mais importância do que a que lhes é conferida. Também a polineuropatia amiloidótica familiar não é nada frequente, mesmo num contexto geográfico determinado, e, felizmente, a sua associação à Medicina Portuguesa é, apesar de tudo, ciclicamente recordada. Talvez a Neurologia seja mais valorizada do que a Medicina do Trabalho, mas, em ambos os casos, deveria ser um pouco mais valorizada a contribuição da Medicina Portuguesa.

1 Comment

  1. Joaquim Pinho

    Como Autoridade Sanitária do Concelho da Feira-84-86–acompanhei alguns casos–existindo então 11 mil trabalhadores do sector manipulador da Cortiça sobretudo então fabrico de Rolhas. Analisei os Relatórios Anuais de então 47511-12—e não chegavam a 10 relatados anualmente…Havia uma consulta de Doenças Profissionai no Hospital de Gaia e outra no Dispensário de Santa Maria de Lamas-Feira…mais “diagnósticadas” apareciam Bronquites crónicas em corticeiros.Estudou a Doença o Dr. Veiga de Macedo ,de Lamas e família corticeira e que dirigia o ex Sanatório de Gaia—-Começaram a separar o critério Poeiras de Cortiça–Pneumoconiose–e o “PÓ BRANCO”-resultante da cozedura e na origem deste Penicilium…Ainda hoje as Juntas das Doenças Profissionais demoram cerca de 4 anos a Caracterizar..a Doença…pois julgo que não estáo pesquisadas as Precipitinas.JUlgo que seria útil actualizar a Amostragem-considerando algumas melhorias em termos de Higiene do Trabalho

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

68% dos doentes não têm a asma controlada

Muito prevalente, subdiagnosticada e mal controlada, a asma ainda pode ser causa de morte no nosso país. Para aumentar a literacia sobre esta doença, o GRESP, a SPAIC e a SPP, embarcam no Autocarro da Asma para esclarecer a comunidade

Ordem firme na necessidade de se resolver pontos em aberto nas carreiras dos enfermeiros

O Presidente da Secção Regional da Região Autónoma dos Açores da Ordem dos Enfermeiros (SRRAAOE), Pedro Soares, foi convidado a reunir esta sexta-feira na Direção Regional da Saúde, no Solar dos Remédios, em Angra do Heroísmo. Esta reunião contou com a presença de representantes dos sindicatos e teve como ponto de partida a necessidade de ultimar os processos de reposicionamento que ainda não se encontram concluídos, firmando-se a expetativa de que tal venha a acontecer até ao final deste ano.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights