Prof. Manuel Carrageta: “A decisão da terapêutica anti-hipertensiva deve ser feita em função do risco global”

12/07/2021
Desafiado pelo HealthNews a comentar aquela que foi a maior e mais detalhada investigação sobre os efeitos do tratamento anti-hipertensivo na diminuição de eventos cardiovasculares, o Prof. Manuel Carrageta admite que “talvez não estejamos no bom caminho quando definimos níveis mínimos ou máximos para começar a tratar a hipertensão”. Segundo o cardiologista o estudo coordenado pela Universidade de Oxford demonstra que uma redução de 5 mmHg da pressão sistólica traz grandes ganhos na diminuição do número de AVC, enfartes do miocárdio e de doentes com Insuficiência Cardíaca. Por outro lado, o especialista aponta que o uso de fármacos em associações fixas pode ser vantajoso para combater aquele que considera o grande “flagelo de saúde pública”, a HTA.

Pharmacological blood pressure lowering for primary and secondary prevention of cardiovascular disease across different levels of blood pressure: an individual participant-level data meta-analysis

Lancet 2021; 397: 1625-36

Uma metanálise efetuada pelo prestigiado grupo de investigadores do “The Blood Pressure Lowering Treatment Trialists Collaboration” (BPLTTC) avaliou os dados de 48 ensaios clínicos de terapêutica anti-hipertensiva, reunindo um total de 344716 participantes.

Os autores estratificaram o conjunto dos 344716 participantes nos 48 estudos, em sete grupos baseados na pressão sistólica à entrada do estudo (menos de 120, 120-129, 130-139, 140-149,150-159, 160-169, e 170 ou superior, em mmHg).

Durante uma média de 4 anos de seguimento, verificaram que por cada 5 mmHg de redução da pressão sistólica, o risco relativo de eventos cardiovasculares baixou cerca de 10%, independentemente dos níveis tensionais basais de entrada no estudo. O risco de AVC, doença cardíaca isquémica, insuficiência cardíaca ou morte por doença cardiovascular reduziu respetivamente 13%, 7%, 14%, e 5%. Nem a existência de doença cardiovascular nem o nível da pressão arterial à entrada no estudo modificaram a dimensão dos efeitos do tratamento anti-hipertensivo. Ocorreram quase 7000 eventos em doentes com pressão sistólica abaixo dos 130 mmHg, o que mostra que uma fração substancial dos doentes que sofreram eventos tinha uma pressão arterial baixa.

Esta metanálise demonstrou que reduzir a pressão arterial pela mesma ordem de grandeza se associa a idêntica redução de futuros eventos cardiovasculares, ao longo de todo o espetro da pressão arterial, pelo menos até aos níveis mais baixos de 115 mmHg de pressão sistólica. Deste modo, este estudo sugere que a terapêutica anti-hipertensiva pode reduzir a incidência de eventos cardiovasculares mesmo em indivíduos com pressão arterial normal ou ligeiramente elevada, mesmo independentemente de os participantes terem ou não doença cardiovascular prévia

Os autores contestam a ideia vigente, aceite consensualmente, que a redução dos níveis tensionais apenas se justifica nos doentes com pressão arterial elevada ou história de doença cardiovascular. As recomendações das Sociedades Científicas advogam que, quando os níveis tensionais ultrapassam os limites estabelecidos, se avalie o risco cardiovascular global. De modo diferente, os resultados desta metanálise sugerem que quando só se administra terapêutica anti-hipertensiva nas situações em que o doente ultrapassa, por exemplo 140 mmHg de pressão sistólica, pode não se estar a tomar a decisão mais adequada. Pelo contrário, a decisão para tratar deve ser tomada após prévia avaliação do risco global de cada individuo. Os doentes com risco elevado têm um maior beneficio absoluto com a descida da pressão arterial.

Há muitos indivíduos com risco cardiovascular elevado, mas com pressão arterial normal ou somente ligeiramente elevada. De acordo com as atuais recomendações estes doentes não são elegíveis para tratamento, mas os resultados deste estudo sugerem que estes indivíduos devem ser candidatos a terapêutica anti-hipertensiva. O contrario também pode ser verdadeiro, no caso de um doente ter níveis tensionais acima dos limites tensionais de tratamento, mas com um risco global para doença cardiovascular muito baixo, o beneficio da terapêutica será negligenciável.

Estes resultados podem ter implicações para a pratica clinica, já que defendem que a decisão terapêutica não deve ser baseada apenas num único número da pressão arterial e a população não deve ser estratificada com base em limites tensionais estabelecidos pelas recomendações cientificas.

O facto de os benefícios terapêuticos relativos serem semelhantes para cada um dos doentes não significa que todos devam ser tratados. A decisão dependerá da determinação da probabilidade individual da ocorrência de um futuro evento cardiovascular. Para esse fim, o medico pode utilizar um dos vários calculadores de risco disponíveis para esse efeito. Outros fatores a não esquecer na tomada de decisão para tratar, são os potenciais efeitos secundários indesejáveis, o eventual impacto psicológico negativo e o custo dos fármacos.

Com a mudança da abordagem proposta não resultará necessariamente um aumento do numero de doentes tratados, mas antes uma melhor adequação do tratamento aos doentes que mais beneficiarão com a terapêutica.

As conclusões destes resultados devem ser temperadas pelo reconhecimento que são baseadas numa metanalise (embora incrivelmente rica de dados) e não num ensaio clinico robusto, embora a realização de um ensaio adequado para dar uma resposta definitiva sobre este tema, seja uma tarefa inatingível nos dias de hoje.

Metanalise

Desafiado pelo HealthNews a comentar aquela que foi a maior e mais detalhada investigação sobre os efeitos do tratamento anti-hipertensivo na diminuição de eventos cardiovasculares, o Prof. Manuel Carrageta admite que “talvez não estejamos no bom caminho quando definimos níveis mínimos ou máximos para começar a tratar a hipertensão”. Segundo o cardiologista o estudo coordenado pela Universidade de Oxford demonstra que uma redução de 5 mmHg da pressão sistólica traz grandes ganhos na diminuição do número de AVC, enfartes do miocárdio e de doentes com Insuficiência Cardíaca. Por outro lado, o especialista aponta que o uso de fármacos em associações fixas pode ser vantajoso para combater aquele que considera o grande “flagelo de saúde pública”, a HTA. 

 

MC- Queria sublinhar que é um grande estudo, feito por um grupo internacional de especialistas grande prestígio. São pessoas que publicam estes artigos nas melhores revistas científicas do mundo. Esta metanálise é extremamente robusta e com uma riqueza como nunca vi. No entanto, temos de reduzir o entusiasmo, esperar por mais análises, mas de facto faz sentido aquilo que os seus autores defendem

HealthNews (HN)- Recentemente foi divulgado um estudo de larga escala, coordenado pela Universidade de Oxford, que conclui que o tratamento anti-hipertensivo reduz o risco de eventos cardiovasculares. Qual a importância que atribui a este tipo de estudos na promoção da qualidade de vida dos doentes?

Manuel Carrageta (MC)- Estes estudos são muito importantes, até porque são feitos por um grupo de grande prestígio da Universidade de Oxford. A investigação envolve epidemiologistas, clínicos e especialistas da prevenção de todo o mundo. São figuras altamente qualificadas que estão a trabalhar nestas análises há muitos anos e que têm feito várias publicações. 

Estamos perante um flagelo que é a hipertensão arterial – a principal causa de morte única da humanidade. Cerca de 14% das pessoas morrem devido a complicações da HTA. Não há nenhuma outra patologia que mate tantas pessoas… É o principal problema de saúde pública em Portugal. Os portugueses têm hábitos de elevado consumo de sal. Embora tenha vindo a reduzir, continuamos a ter um problema gravíssimo que se reflete no número de AVC muito elevado.

HN- Considera os dados obtidos justificam a revisão das guidelines atualmente disponíveis?

MC- Poderão justificar. Este estudo o que mostra é por cada 5 mmHg da redução da pressão sistólica, o risco relativo de eventos cardiovasculares diminui cerca de 10%, quer numa pessoa com 180 mmHg de pressão sistólica, quer num indivíduo com 120 mmHg. Portanto, verificou-se uma descida uniforme quer em pessoas com doença cardiovascular subjacente ou sem. É um estudo que nos obriga a pensar e refletir… Talvez não estejamos no bom caminho quando definimos níveis mínimos ou máximos para começar a tratar a hipertensão. Neste estudo isso é posto em questão. 

HN- Atualmente muitos doentes com risco cardiovascular elevado, mas com pressão arterial normal ou ligeiramente elevada são excluídos da terapêutica anti-hipertensiva. Estaremos a insistir num erro?

MC- Sou da opinião que sim. O que temos de avaliar nos nossos doentes é o risco global. O importante não é o número de pressão sistólica, mas sim o risco global. Temos de ter em consideração a idade do doente, a sua pressão arterial, o nível do colesterol, verificar se tem diabetes ou se é fumador, de maneira a reduzir o risco de HTA no doente. Portanto, a decisão da terapêutica anti-hipertensiva deve ser feita em função do risco global. Isso implica a redução de eventos cardiovasculares. Verificamos neste estudo que mesmo em doentes com pressão arterial aparentemente normal ocorreram sete mil eventos relacionados com HTA. 

Acho que isso deve ser revertido nas nossas guidelines e na abordagem clínica. 

HN- Aquela que foi a maior e mais detalhada investigação sobre medicamentos de redução da pressão arterial sugere que um grau fixo de redução farmacológica é igualmente eficaz para a prevenção primária e secundária da doença cardiovascular. O número de doentes tratados poderá vir a aumentar caso se avance com alterações na prática clínica?

MC- Não necessariamente. Haverá sempre doentes que não precisarão de ser tratados por terem uma pressão arterial de 140 mmHg, mas com risco baixo de HTA. Falo, por exemplo, de pessoas não fumadoras, magras, sem diabetes e que praticam exercício físico. Por outro haverá pessoas com risco elevado de HTA que beneficiarão do tratamento da anti-hipertensivo. 

HN- O estudo refere que é esperada uma maior redução do risco cardiovascular com uma maior redução da Pressão Arterial, como é o caso de uso de múltiplas substâncias anti-hipertensivas. Vê nesta afirmação a clara indicação da necessidade de uso de fármacos em associações fixas?

MC- Tratando-se de uma doença complexa, em que há uma perturbação de vários mecanismos, vejo uma grande vantagem. Se utilizarmos um grupo de fármacos vamos atuar em vários níveis dos defeitos que levam à subida da pressão arterial. Doses baixas poderão significar poucos efeitos acessórios. Estes fármacos permitem uma descida mais uniforme. 

A HTA é uma doença fácil de diagnosticar, temos bons medicamentos para tratar a doença… Aparentemente temos tudo para ter sucesso, mas temos um problema de adesão à terapêutica. E, aí, as combinações são realmente a grande solução.

HN- Quais os ganhos que se obtém com um eventual alargamento do número de doentes sob este tipo de terapêutica? 

MC- No caso português concretamente continuamos verificar que o AVC é uma das principais causas de morte. Portanto, o estudo demonstra que o tratamento anti-hipertensivo reduz 13% o risco de AVC, 5% os enfartes do miocárdio e 14% a Insuficiência Cardíaca. 

Estes dados são relevantes, já que a IC é a nova epidemia… A sociedade vai envelhecer e o coração vai ficar cansado. Ora, se um coração tem de bombear o sangue em média 100 mil vezes por dia, claro que o coração vai ficando cansado e entrar em IC. É uma doença que dá uma péssima qualidade de vida e o seu tratamento traduz-se em custos bastante elevados. A IC exige muitos internamentos e reinternamentos… Portanto, investir na HTA é poupar dinheiro. 

É importante estarmos atentos àquele que é o principal flagelo de saúde pública. Não é a malária, não é a tuberculose, não é a Covid-19, mas sim a hipertensão arterial. 

HN- Uma nota final

MC- Queria sublinhar que é um grande estudo, feito por um grupo internacional de especialistas grande prestígio. São pessoas que publicam estes artigos nas melhores revistas científicas do mundo. Esta metanálise é extremamente robusta e com uma riqueza como nunca vi. No entanto, temos de reduzir o entusiasmo, esperar por mais análises, mas de facto faz sentido aquilo que os seus autores defendem

 

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