O estudo, publicado na revista científica de acesso aberto Science Advances, teve o contributo do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), onde foi feito em grande parte o trabalho, do Algarve Biomedical Center Research Institute (Instituto de Investigação do Centro Biomédico do Algarve) e de instituições na Áustria e na Holanda.
Os cientistas descobriram que um menino de três anos e uma jovem de 16 anos, que em comum têm microcefalia (cérebro anormalmente pequeno) e perturbações do desenvolvimento intelectual, apresentam mutações em ambas as cópias (herdadas do pai e da mãe) do gene BUB1, que codifica uma proteína “responsável pela monitorização de problemas na divisão celular”.
“Esta foi uma descoberta muito surpreendente, pois acreditava-se que mutações que afetem a função de uma proteína tão essencial seriam incompatíveis com a vida”, afirmou à Lusa a investigadora Raquel Oliveira, que lidera no IGC o laboratório da Dinâmica dos Cromossomas.
Segundo a bioquímica, o trabalho mostra que nestes dois primeiros doentes identificados com estas “mutações agressivas”, geradas em ambas as cópias do gene BUB1, que levam a “disrupções graves” na proteína BUB1, as mutações “não impediram o desenvolvimento do organismo”, apesar de o rapaz e a rapariga terem deficiências: microcefalia, perturbações intelectuais e “outras anomalias clínicas características” de cada um.
O menino de três anos e a adolescente de 16 anos estavam a ser clinicamente acompanhados na Áustria e na Holanda.
Para Raquel Oliveira, “é possível que mais crianças, adolescentes ou mesmo adultos tenham esta mutação no seu genoma” e que o estudo possa “incentivar a comunidade médica a incluir” o gene BUB1 “no diagnóstico de doenças raras”.
O IGC realça, em comunicado, que a maioria das doenças raras “continua muito pouco estudada” e é difícil de diagnosticar, advertindo que um diagnóstico errado ou ausente tem consequências no tratamento, prognóstico e acompanhamento do doente.
“O facto de termos descoberto um novo gene associado a microcefalia e a descrição das características clínicas adicionais das pessoas com mutações neste gene permitirão que a comunidade médica possa fazer o diagnóstico de novos pacientes com mutações no BUB1 mais facilmente”, justificou Raquel Oliveira.
O estudo, à semelhança de outros, sugere que o cérebro em desenvolvimento “é muito suscetível a problemas que ocorrem durante a mitose”, o processo de divisão celular.
O IGC explica que quando as células se dividem “é essencial que a informação genética seja equitativamente distribuída pelas novas células”.
Contudo, “é neste momento que poderão surgir erros na divisão, que podem levar a danos nas moléculas de ADN que contêm a informação genética”, os cromossomas, “ou a alterações do seu número”. Tais erros estão associados a diversas doenças.
Sara Carvalhal, primeira autora do estudo e ex-investigadora do IGC, mudou-se para o Centro Biomédico do Algarve para criar o seu próprio laboratório, onde se debruça sobre como os defeitos na mitose afetam as doenças raras.
Quando ainda trabalhava no laboratório do IGC dirigido por Raquel Oliveira, cujo foco é perceber “os aspetos fundamentais da divisão celular e os mecanismos que asseguram a fidelidade deste processo”, Sara Carvalhal “estabeleceu colaborações com clínicos e geneticistas que trabalham em doenças raras onde se observam defeitos na cola dos cromossomas”, a proteína coesina, que mantém os cromossomas juntos, para averiguar com casos humanos uma hipótese testada com moscas-da-fruta.
Numa experiência com moscas-da-fruta, a investigadora descobriu que a “perda parcial de coesão” dos cromossomas “resulta em problemas inesperados” na divisão celular “que estão associados a movimentos erróneos dos cromossomas em vez de cromossomas ‘descolados'”.
Fruto das colaborações feitas com médicos e geneticistas estrangeiros, o IGC recebeu células de um dos doentes objeto do estudo hoje divulgado e cujos cromossomas “pareciam ter problemas na tal cola” que os mantém unidos.
“Para nós, foi surpreendente quando descobrimos que era o [gene] BUB1 que estava mutado”, disse à Lusa Sara Carvalhal.
Os cientistas utilizaram tecnologias de sequenciação do genoma para identificar as mutações no gene BUB1 nos dois doentes e usaram células de ambos, obtidas por biópsia de pele para fins de investigação, para perceber o comportamento celular durante a mitose.
“Termos acesso a amostras destes pacientes foi fundamental para descobrir como as mutações neste gene originam erros na mitose, no contexto desta síndrome”, assinalou a investigadora portuguesa, que, já no seu laboratório no Algarve, realizou algumas das experiências para o estudo agora publicado.
De acordo com Sara Carvalhal, a descoberta feita contribui para “uma melhor compreensão das diferenças entre portadores desta síndrome e de outras já descritas que clinicamente têm alguma similaridade com o observado nestes casos”, como a síndrome de aneuploidia variegada em mosaico, as coesinopatias e a microcefalia primária.
Uma “caracterização mais profunda desta nova síndrome”, ainda sem nome devido aos poucos casos identificados, apenas dois no estudo publicado, exigirá um maior número de doentes, mas também o acompanhamento dos dois casos já identificados para verificar, nomeadamente, se as mutações em ambas as cópias do gene BUB1 estão ligadas “a uma maior probabilidade de desenvolvimento de cancro”.
Segundo a investigadora Raquel Oliveira, alterações numa das cópias do gene BUB1 estão ligadas ao aparecimento de cancro. A “expressão reduzida” do BUB1 está associada a abortos espontâneos, adianta o Instituto Gulbenkian de Ciência em comunicado.
Uma outra investigadora portuguesa, do IGC, Alexandra Jorge Tavares, que trabalha no laboratório liderado por Raquel Oliveira, também assina o artigo publicado na Science Advances.
LUSA/HN
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