Pandemia levou milhares da Boa Vista mas vida regressa à ilha cabo-verdiana

6 de Março 2022

Milhares de trabalhadores deixaram a Boa Vista desde março de 2020, devido à ausência de turismo provocado pela pandemia, mas aos poucos a ilha cabo-verdiana retoma o movimento e a vida, com a reabertura dos hotéis.

“Ainda não é grande coisa, mas é muito melhor que antes. Antes estava tudo parado”, contou à Lusa Monquite Júnior, imigrante da Guiné-Bissau radicado em Cabo Verde desde 2002.

Em março de 2020, quando surgiram os primeiros casos de Covid-19, precisamente na ilha da Boa Vista, a segunda mais turística de Cabo Verde, o impacto foi total.

“Isto parou tudo”, recordou.

Desde 2013 na Boa Vista, o taxista guineense de 43 anos explicou que com o encerramento dos hotéis e das ligações internacionais, os que “tinham como” ficaram na ilha, enquanto os restantes regressaram às ilhas de origem.

“Eu como guineense, há muitos aqui, a minha vida estava aqui, fiquei, a aguentar. Mas estive este tempo todo parado”, explicou.

Cabo Verde confirmou em 19 de março de 2020 o primeiro caso de Covid-19 no arquipélago, um turista inglês de férias na Boa Vista, que viria a morrer quatro dias depois – seguiram-se mais 400 óbitos por complicações associadas à doença em dois anos -, além de outro inglês e um holandês. Rapidamente o Governo colocou a ilha em quarentena, isolada de todas as outras, enviando militares e equipas médicas, além de obrigar a população a ficar em casa.

Com mulher e um filho, que nasceu em abril de 2020, um mês depois do início da pandemia de Covid-19, Monquite teve de “viver de ajuda”, além dos cerca de 13.500 escudos (123 euros) que recebeu até outubro de 2021 do ‘lay-off’.

“Deu para sobreviver”, contou Júnior.

Os isolamentos dos casos crescentes de Covid-19 eram feitos, ainda em março e abril de 2020, nos próprios hotéis da ilha e só progressivamente os turistas abandonavam a Boa Vista, em voos de repatriamento, dado o encerramento das ligações aéreas internacionais.

A Boa Vista tornou-se numa ilha ainda mais deserta com a saída dos trabalhadores que perderam o emprego.

“Foram milhares de trabalhadores que saíram daqui, eram de todas as ilhas, mas de Santo Antão e de Santiago a maioria. Foi uma debandada. Na altura disseram que saíram 8.000 trabalhadores. Mas imagino que foram muitos mais”, explicou Nélson Livramento, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Boa Vista, recentemente criado.

O sindicalista relatou à Lusa os impactos da pandemia numa ilha que tinha cerca de 20.000 habitantes, mas apenas 5.000 naturais.

O regime de lay-off, que esteve em vigor desde abril de 2020 até ao final de 2021, garantindo aos trabalhadores, nomeadamente do setor do turismo, 70% do salário, em parte suportado pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), ajudou a minimizar as dificuldades.

“Mas podia ser melhor. Os trabalhadores ficaram abandonados”, contestou ainda, garantindo que se passou fome na ilha.

“Houve, houve. Não queriam que se dissesse, mas houve”, assumiu Nélson Livramento.

Entretanto, conta que muitos já regressaram, entretanto, à Boa Vista, com a reabertura dos hotéis da ilha, nomeadamente as grandes cadeias.

O turismo parou por completo na ilha e só um ano depois, em 24 de março de 2021, o Aeroporto Internacional Aristides Pereira voltou a receber voos internacionais. Nesse dia, chegou à Boa Vista um voo ‘charter’ da companhia italiana Neos proveniente de Milão, numa retoma da procura turística que acelerou no final do ano, a partir de outubro, com o regresso do operador TUI e a reabertura dos hotéis do grupo espanhol RIU.

Cabo Verde recebeu em 2019 um recorde de 819.308 turistas, 45,5% nos hotéis da ilha do Sal e 29,4% na Boa Vista, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística cabo-verdiano, num setor que representa 25% do Produto Interno Bruto (PIB) e do emprego do arquipélago, mas a procura global caiu cerca de 70% em 2020, devido à pandemia de Covid-19.

Aquelas duas ilhas concentram também a maioria das 284 unidades hoteleiras que funcionavam em Cabo Verde antes da pandemia, então com uma oferta oficial em todas as ilhas superior a 21 mil camas. No Sal, com 30 unidades hoteleiras, a oferta era de 9.571 camas, enquanto nas 24 unidades na Boa Vista a oferta ascendia a 6.395 camas.

Na Boa Vista não há casa sem trabalhadores na área do turismo, embora sejam sobretudo os oriundos de outras ilhas. A pandemia virou a vida destes trabalhadores, admitiu Nélson Livramento: “Foi uma loucura, o pessoal não sabia o que fazer”.

Para o sindicalista, a vida mudou, entretanto: “Vê-se nas pessoas que estão mais alegres. Vão trabalhando, meio exploradas, mas têm aquele vencimento, mesmo que pouco”, ironizou, apontando o salário médio de 20.000 escudos (182 euros) dos trabalhadores do turismo.

Ainda assim, afirma que “agora as coisas estão encaminhadas”, com o progressivo regresso do turismo.

Já Monquite Júnior relatou que “num bom dia” ao volante do táxi consegue agora “10 ou 20 euros” em serviços. “Há dias em que não faço nada e ando atrás do cliente, para ver se compensamos alguma coisa”.

Até agora, acrescentou, a solução foi ir vivendo apenas com o que tinha: “Quando ganho 20 contos, tenho de viver com 20 contos, quando ganho cem, tenho de aprender a viver com 100”.

Ainda assim, entre alguma azáfama que já se sente para transportar os clientes locais ou os transferes do aeroporto para os hotéis, acredita que o pior já passou.

“Acho que isto vai melhorar”, rematou.

LUSA/HN

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