Jorge Silva: Maioria dos doentes que chegam à hemodiálise “nunca passaram por um nefrologista”

06/29/2022
Em entrevista exclusiva ao HealthNews, o diretor do Serviço de Nefrologia do Hospital Garcia de Orta, Jorge Silva, teceu duras críticas aos decisores políticos, os principais responsáveis, segundo o especialista, por mais de metade dos doentes nunca terem sido seguidos em consulta por um nefrologista antes de iniciarem a hemodiálise, e pela grande maioria ter de suportar um tratamento penoso, que obriga os doentes a sair de casa e, por vezes, a percorrer centenas de quilómetros, quando existem outras soluções que permitem viver melhor com doença renal crónica. O médico lamenta que os governantes nunca tenham tido a coragem de responder às necessidades dos doentes com esta patologia, que poderá ser a quinta causa de morte no mundo dentro de duas décadas.

HealthNews (HN)- Comecemos pela sintomatologia e impacto na vida dos doentes.

Jorge Silva (JS)- É uma doença que tem uma grande abrangência: cerca de 10% da população tem esta doença. Tem aumentado sobretudo porque a longevidade das populações tem aumentado e a incidência de doenças que secundariamente vão atingir o rim, como a diabetes e a hipertensão, também tem aumentado. Portanto, há uma grande incidência.

Só que, e isso dificulta muito o nosso trabalho, a sintomatologia da doença só aparece nos estádios mais avançados. Portanto, um doente pode estar já num estádio 4 ou 5 e só nessa altura é que aparecem os principais sintomas, que se manifestam sob a forma de uma anemia com um cansaço; pode haver, nas fases mais avançadas, discrasias hemorrágicas, ou seja, a tendência para hemorragias fáceis; sintomas gastrointestinais, náuseas e vómitos.

Na fase terminal, se o doente não for tratado com diálise ou outro tratamento substitutivo da função renal, manifesta-se por uma redução da diurese. O doente começa a urinar cada vez menos, começa a ficar inchado, pode entrar em coma, pode ter perturbações do equilíbrio hidroeletrolítico, do potássio e do sódio que levem a arritmias e paragem cardíaca. É uma doença traiçoeira, que só se manifesta quando a taxa de filtração glomerular é menor que 30 ml/min, porque o rim tem sempre muita possibilidade de compensar. Compensa até ao extremo.

Com um milhão de doentes com doença renal, os nefrologistas não chegam, e, portanto, temos de nos socorrer da Medicina Geral e Familiar para fazer o despiste e o tratamento inicial – sempre em colaboração com os nefrologistas, mas o seguimento pela Nefrologia é só nessa fase de doença já mais avançada de estádio 4 ou 5. Não quer dizer que não haja casos pontuais seguidos pelo nefrologista também, mas grosso modo são essas as regras.

A nossa tarefa é colaborar com a Medicina Geral e Familiar para que os doentes, antes de desenvolverem essas fases avançadas, possam ser tratados de uma forma nefroprotetora, ou seja, para que a doença renal não progrida. Isto porque nas fases iniciais temos muito mais capacidade de prevenir a progressão. Nesse sentido, temos de trabalhar em conjunto com a Medicina Geral e Familiar para tentar colmatar este problema, que é muito importante do ponto de vista da doença – é uma doença grave e debilitante – e, também, do ponto de vista económico, para o país.

HN- Quais as estratégias da comunidade médica para lidar com esse diagnóstico traiçoeiro?

JS- Acho que a estratégia principal deve ser prevenir. Na última década, nós temos avançado bastante com medicação que previne a progressão da doença, ou, pelo menos, retarda essa progressão. Mas, ao mesmo tempo, também temos de proporcionar aos doentes, quando é necessário, a maneira de se tratarem, sobretudo nas fases mais avançadas, com opções verdadeiras. Ou seja, infelizmente a grande maioria chega à fase 4 e 5 e obrigatoriamente tem de fazer hemodiálise, quando outras terapêuticas podiam ser implementadas pelo nosso Governo, nomeadamente: o acesso preferencial à diálise peritoneal, que pode ser feita em casa; a diálise domiciliária, que é quase inexistente em Portugal; e a transplantação antes de o doente iniciar diálise. Isto são alternativas que só existem no papel, porque não tem havido um enfoque da parte dos responsáveis políticos na prevenção e nas opções de tratamento da nossa população.

A nossa estratégia é convencer os nossos dirigentes de que mais vale investir um pouco mais na prevenção e facultar aos doentes a possibilidade de se tratarem tendo verdadeiras opções. Estou a falar de um investimento que o Governo deveria fazer na figura do cuidador informal para o doente renal crónico avançado, em [estádio] 4 e 5, que, no fundo, é fomentar amigos ou familiares que queiram ajudar no tratamento e dar-lhes estímulos monetários efetivos.

A hospitalização domiciliária é também importante. No Garcia de Orta já temos para a Medicina Interna, mas também poderíamos ter para os doentes nefrológicos. Muitas vezes colaboramos com a Medicina Interna nesses doentes internados em casa que recebem equipas de médicos e enfermeiros. E finalmente, devia haver também um fomento de cuidados domiciliários de equipas dos serviços de nefrologia – médicos e enfermeiros que iriam a casa do doente que escolhe uma opção autónima, ou aos lares onde eles estivessem, para poderem fazer diálise no domicílio. Já há tecnologia para isso.

HN- Porque é que essas políticas não saem do papel?

JS- Tinha que fazer essa pergunta aos políticos, os responsáveis fundamentais. O que eu digo é que é necessário investir, e investir significa aplicar financeiramente uma determinada política, mesmo que não traga resultados imediatos. Quando se investe na figura do cuidador informal ou na diálise domiciliária, está-se a melhorar a qualidade de vida dos doentes, independentemente de eventualmente poder parecer que não é economicamente tão viável. Mas, atenção, eu quero relembrar que os custos dos doentes que estão em diálise em centros são elevadíssimos. São custos superiores a 500 milhões de euros por ano. E a diálise domiciliária, por exemplo, permitiria que os doentes comodamente fizessem diálise no seu domicílio e não houvesse necessidade de pagar transportes. É uma questão de os governos fazerem contas e escolherem as pessoas certas para tomar as decisões.

Não estou a falar de nada de novo. Nos países nórdicos, por exemplo, a diálise peritoneal tem uma grande prevalência, porque as distâncias que os doentes têm que percorrer são grandes e compensa realmente proporcionar ao doente diálise no seu domicílio. Em Portugal, no Alentejo por exemplo, passa-se o mesmo, mas a diálise peritoneal não está significativamente aumentada. Os doentes são muitas vezes transportados a distâncias de 200 quilómetros para fazerem diálise três vezes por semana, o que é uma tortura. São coisas que nós, técnicos, podemos sugerir, mas quem tem de pôr no terreno são os políticos.

HN- Quais são os melhores tratamentos em Portugal?

JS- O melhor tratamento, sem dúvida, é a transplantação renal, porque permite a substituição de todas as funções do rim. Ou seja, enquanto a diálise só substitui a parte da filtração e da reabsorção dos fluidos, na transplantação o doente leva um rim novo. O doente não fica curado, fica dependente de uma imunossupressão, mas pode ter, potencialmente, uma excelente qualidade de vida, uma vida praticamente normal. E um transplante pode durar 20 anos. Depende das estatísticas, mas, em média, são cerca de 15 anos. Também depende dos países, idade, tipo de transplante e centro de transplantação.

A transplantação é sem dúvida o melhor método, só que não é aplicável a todas as pessoas, porque muitos doentes já mais idosos não toleram a imunossupressão, ou não toleram a cirurgia do transplante, e, portanto, têm que ser muito bem estudados e muito bem individualizados para se iniciar essa opção. Além da transplantação, temos a diálise peritoneal: um tratamento que consiste em fazer passar um líquido pelo peritoneu, pelo abdómen do doente, que vai promover as trocas necessárias para que haja um simulacro de substituição da função renal. A diálise peritoneal pode permitir manter a função renal por muito tempo. É uma ajuda para o que resta da função do rim não se perder rapidamente. O rim ativo do doente dura mais e pode servir como plataforma até à transplantação. Ou seja, também é um tratamento muito válido, muito suave e uma opção que devia ser mais estimulada.

Depois temos a hemodiálise, que é um tratamento relativamente violento, apesar de ter evoluído muito, e hoje há muito mais segurança. Estou-lhe a dizer isto porque em quatro horas, que é o tempo da diálise (o sangue vai ser “purificado”), vai-se fazer o trabalho de dois dias (48 horas), porque a diálise tem de ser feita de dois em dois dias. Nessas quatro horas, é muito difícil que o doente não se sinta mal, não tenha até cãibras, não tenha hipotensões. E o doente fica limitado, não podendo trazer muito peso, nem beber muitos líquidos, e tem uma dieta específica e rigorosa a respeitar. Este tratamento da diálise, em geral, como consequência de ser um pouco violento, acaba por levar a que, ao fim de um ou dois meses, o doente perca a função renal residual que tinha. Ou seja, o doente fica praticamente sem urinar e sem função renal, o que é bastante prejudicial.

Outra alternativa à diálise em centro hospitalar ou privado é a diálise domiciliária – uma alternativa mais cómoda para o doente, que, assim, não tem de se deslocar, só tem de ir mensalmente à consulta de nefrologia. Como faz em casa o tratamento, não há limitação de tempo. Ou seja, pode também fazer a diálise em quatro horas, mas em princípio fará em mais. Portanto, é um método muito mais estável do ponto de vista hemodinâmico e que permite mais qualidade de vida, ao dar mais tempo para que as moléculas tóxicas possam sair do organismo. Dá maior estabilidade hemodinâmica, preserva a função residual e diminui os custos dos transportes. No fundo, é um investimento que eu aconselharia o Governo a fazer, mas nunca houve coragem para tal. Pergunte aos políticos porquê.

HN- Prevê-se que seja a quinta causa de morte em 2040. O que espera que evolua entretanto?

JS- Aconselharia os nossos responsáveis políticos a investirem na nefrologia preventiva, reforçando os incentivos para os clínicos gerais tratarem os doentes nas fases precoces, prevenirem a diabetes e a hipertensão e se articularem muito bem com os nefrologistas, para que os doentes que realmente estejam a progredir mais rapidamente tenham acesso a uma consulta especializada – o que nem sempre acontece. Mais de metade dos doentes que chegam à hemodiálise nunca passaram por um nefrologista. Isto mostra como é que a situação atual está.

Aconselharia também os nossos dirigentes a darem oportunidade aos doentes de escolherem a melhor forma de se tratarem, ou seja, não serem praticamente empurrados para a hemodiálise de centro e terem as opções de que falei, e de uma forma verdadeira. Acho que os nossos dirigentes não deviam ter a miopia de olhar para o custo imediato e deviam realmente apostar na figura do cuidador informal, devidamente incentivado para ajudar os doentes nessas circunstâncias, na hospitalização domiciliária e nos cuidados domiciliários por equipas dos serviços de nefrologia, que podem ser canalizadas para esses doentes que querem mais autonomia.

Acho que continuamos com um problema muito grave: ter mais de 20 mil doentes em tratamento substitutivo da função renal. Esses doentes sofrem muito e precisam de ser incentivados. É um setor da população que tem que bem ser apoiado. Acho que tem havido alguma estabilidade ultimamente, mas também tem sido à custa de uma mortalidade muito grande dos doentes que estão em hemodiálise. Em 2020 morreram cerca de 15% dos doentes que estavam em hemodiálise. É uma situação muito grave, que precisa de ser olhada de uma forma objetiva e personalizada.

Entrevista de Rita Antunes

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