Na contestação, a que a Lusa teve acesso, o Ministério da Saúde (MS) considera que o Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), presidido por Sebastião Póvoas, não tem legitimidade para intentar esta ação, a qual acontece na sequência do arquivamento do processo disciplinar ao jurista Rui Mouta.
A Lusa noticiou em 21 de abril que a ERC tinha avançando com uma ação contra o MS depois do arquivamento do processo contra o jurista que trabalhava no regulador desde 2008 e é quadro da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS).
A ERC tinha recorrido do arquivamento pelo IGAS para o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, o qual em fevereiro também arquivou o processo, o que levou o Conselho Regulador, que terminou o mandato em dezembro, a intentar uma ação administrativa comum “de impugnação do ato administrativo proferido pelo Inspetor Geral das Atividades em Saúde em 06/11/2022 e do ato administrativo praticado pelo Ministério da Saúde em resultado do recurso hierárquico” interposto pela entidade.
Na contestação, o MS refere que o relatório final do processo disciplinar diz “expressamente” que desde 27 de junho é à “IGAS que cabe exercer o poder disciplinar sobre o trabalhador visado”.
A decisão de arquivamento do procedimento disciplinar pela IGAS “não é recorrível pela ERC, que se deveria ter abstido de tentar condicionar a tomada de uma decisão que não lhe compete”, como também “não é detentora de legitimidade para intentar a presente ação administrativa”.
Além disso, “não pode assim aceitar-se que a ERC seja titular de um putativo ‘direito à punição’ do trabalhador, apenas divisável pela própria; e que poderia retirar para a sua esfera jurídica uma concreta utilidade da pretendida invalidação dos atos impugnados”.
Aliás, à ERC “competiria apenas instaurar, instruir e subsequentemente remeter o processo para decisão à entidade competente para o efeito”, a IGAS, que, “por sua vez, tinha a prerrogativa de, fundamentadamente, acolher ou não a proposta do instrutor (…), concordando ou não com as conclusões do relatório final”, lê-se na contestação.
“Pelo que é despropositado – e até, perdoe-se a franqueza, absurdo – invocar-se a este respeito a ‘violação da autonomia de gestão e da independência orgânica, funcional e técnica da autora'”, adianta o MS.
O MS argumenta que a ERC “não sofreu qualquer dano real e efetivo nos seus interesses, nem é detentora de um direito subjetivo à punição do trabalhador relativamente a quem instaurou o procedimento disciplinar”.
“Com este posicionamento constitui-se a autora [ERC] em abuso de direito por ‘venire contra factum proprium’, que traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida e proclamada – o que faz com que o exercício do direito que agora se arroga seja ilegítimo, e assim deva ser valorado pelo tribunal”, prossegue.
Relativamente à nomeação do instrutor do processo disciplinar, o MS refere que a sua nomeação “não deve recair sobre alguém relativamente a quem seja notória a existência de um pendor favorável ou desfavorável a quem é visado no processo, ou a quem mandou instaurar” o mesmo.
Pelo que “daí não abone a favor da isenção e imparcialidade do nomeado o facto de o mesmo titular ora surgir na qualidade de instrutor do procedimento disciplinar, ora na de subscritor do recurso hierárquico da ERC, ora ainda enquanto mandatário daquela entidade independente e enquanto tal subscritor da petição inicial da presente ação”.
E vai mais longe: “Esta atuação multipolar deixa transparecer um traço comum a todas aquelas intervenções: o de, a um tempo, pugnar pela condenação do trabalhador visado – o que ressalta imediatamente das considerações subjetivas, opiniões conclusivas e juízos de valor emitidos logo na acusação; e a outro – sem disfarce, faça-se justiça! – o de não se conformar com a ausência de punição do trabalhador tal como por si proposta, sem outra sustentação atendível”.
A ERC conduziu e concluiu o processo disciplinar ao jurista Rui Mouta, que trabalhava na ERC, mas quando a sanção tinha de ser aplicada, este já prestava a sua atividade na IGAS.
Quadro da IGAS, Rui Mouta exercia funções na ERC desde maio de 2008, na sequência de requisição, tendo em 2009 sido assinado um acordo de cedência de interesse público entre as duas entidades e o trabalhador. Em 16 de outubro de 2017 foi nomeado diretor interno do departamento jurídico da entidade reguladora, tendo o atual Conselho Regulador o nomeado diretor efetivo.
Em 10 de maio de 2022, o jurista endereçou uma carta ao Conselho Regulador, na sequência de um despacho de março em que lhe retirava competências, ou seja, ‘esvaziando’ as suas funções.
No dia seguinte, por deliberação do órgão, foi “instaurado procedimento disciplinar” contra o trabalhador “por factos relacionados com acusações que o mesmo dirigiu ao Conselho Regulador, por tal conduta violar os deveres” aos quais se encontrava vinculado.
Na contestação, o MS cita vários artigos sobre liberdade de expressão, aludindo à carta enviada pelo jurista ao Conselho Regulador.
“Ainda que as expressões usadas pelo trabalhador, embora legítimas, comportem um conteúdo crítico e veiculem opiniões discordantes e afirmações suscetíveis de ‘ferir, chocar ou inquietar’ os destinatários, elas não podem deixar de se considerar enquadradas no exercício da liberdade de expresso e dos estritos limites da crítica admissível”, refere o MS.
Em 25 de maio de 2022, o Conselho Regulador deliberou a cessação da comissão de serviço de Rui Mouta e do acordo de cedência de interesse público, tendo produzido efeitos no dia 27 de junho.
Em 04 de julho foi proferida acusação do processo disciplinar e em 27 de setembro o relatório final do instrutor com a proposta de aplicação de uma sanção de multa no montante de seis remunerações base diárias, “por violação do dever de correção e urbanidade”.
Entretanto, o processo disciplinar foi remetido para a IGAS e, em 06 de novembro, o Inspetor-Geral das Atividades de Saúde determinou o arquivamento do processo, referindo, entre outras coisas, que a conduta do arguido e a carta não ultrapassou “a dimensão tolerada, inerente à liberdade de expressão e à crítica”, não traduzindo “uma inequívoca falta de respeito”.
LUSA/HN
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