A nova Orientação da DGS de 10/05/2023, que atribui às Enfermeiras e Enfermeiros Especialistas de Saúde Materna e Obstétrica (EESMO) a função e responsabilidade de vigilância e assistência do trabalho de parto de baixo risco, tem sido acometida por uma onda de indignação médica. Foi com enorme perplexidade que tomamos conhecimento de alegações que vão desde a não auscultação da Ordem dos Médicos, até ao limite absurdo de se pretender afastar os médicos obstetras dos partos.
A Orientação é bastante clara e demonstra que a Ordem dos Médicos não só foi auscultada, como integrou a Comissão Científica que culminou neste documento. Entre outros, foram obtidos contributos dos Colégios da Especialidade de Pediatria (Secção de Neonatologia), Anestesiologia e Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos, assim como entidades de mérito e reconhecimento nacional como a Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal e a Sociedade Portuguesa de Neonatologia.
Uma particularidade, para aqueles que consideram esta medida uma manobra de afastamento dos médicos obstetras do seu legado, é relembrar que só a partir das décadas de 60 e 70, em pleno apogeu médico e com um sistema patriarcal bem presente e enraizado, é que se começou a assistir à crescente passagem do parto para o domínio dos médicos obstetras, e gradualmente retirado da atividade das parteiras profissionalizadas, aquando do surgimento da especialidade de “Obstetrícia e Ginecologia, em 1972, e oficial reconhecimento pelo Ministério da Saúde.
A transferência deste legado trouxe vantagens incontestáveis, desde logo a contribuição para a evolução dos cuidados em saúde e redução da morbilidade e mortalidade materna e neonatal, mas é importante lembrar que, a par desta evolução, assistiu-se também à formação de Enfermeiras Obstetras com a aprovação, em 1968, do programa do curso de Enfermagem Obstétrica pelas Escolas Profissionais de Enfermagem, que levou à substituição das parteiras por enfermeiras com especialização obstétrica.
Portanto, ambas as profissões, médica e de enfermagem, abraçaram a assistência ao parto em contexto hospitalar, tendo hoje praticamente a mesma antiguidade e atuando muitas vezes lado a lado.
O curso de Enfermagem Obstétrica sofreu várias atualizações ao longo dos tempos. Atualmente, designa-se de Pós-Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica. Para o exercício da atividade de EESMO é necessária a Licenciatura de Enfermagem com a duração de 4 anos, acrescida de 2 anos da dita especialização, o que totaliza obrigatoriamente 6 anos de estudo com uma forte componente teórica e prática. É assim irrefutável o conjunto sólido e aprofundado de conhecimentos e técnicas, que dota e capacita os enfermeiros das competências necessárias ao desempenho de um cuidado de excelência a mulheres grávidas, parturientes e recém-nascidos.
Não se pense, portanto, que esta nova orientação constitui um retrocesso nos cuidados de saúde, pois não se trata de devolver esta atividade a parteiras profissionalizadas, mas sim de reconhecer que outros profissionais de saúde, como sendo os EESMO, evoluíram científica e tecnicamente a ponto de reunirem o perfil de competências específicas exigidas para o exercício de intervenções autónomas em todas as situações de baixo risco, como aliás está legislado no Regulamento 391/2019, publicado em Diário da República.
Em vários países de referência, como a Islândia, Finlândia, Suécia, Reino Unido, Canadá, Japão, Austrália, entre outros, os partos de baixo risco não são realizados por médicos obstetras, mas sim por parteiras (“midwives”) que viram a sua profissão ser regulamentada e tornar-se autónoma.
Para os mais céticos, destaco o exemplo da Islândia, com uma taxa de partos eutócicos, em 2015 de 75,7% contra 48,7% em Portugal, e em 2019 de 76% contra 45,7%. Estes indicadores não comprometem as taxas de mortalidade neonatal, com registos em 2015 de 1,71‰ contra 2‰ em Portugal, evoluindo em 2019 para 0,46‰ contra 1,9‰ (PORDATA e EUROPERISTAT).
E antes que os mais sensíveis considerem esta comparação uma demonização dos médicos obstetras, sabe-se que a prática de uma medicina defensiva pode, de facto, conduzir ao aumento de intervenções que se têm vindo a provar, à luz da evidência atual, poderem ser desnecessárias e abusivas e, economicamente, insustentáveis.
Não obstante, é muito importante que não se confunda aquilo que é o retrato do que há anos já compõe o perfil de competências dos EESMO, com a não valoração dos médicos obstetras. Pelo contrário! É precisamente por ocuparem um papel fulcral e inquestionável no seio das equipas de obstetrícia, e também pelas atuais e conhecidas dificuldades de escassez, que devem ser um recurso otimizado e requerido nas situações em que um trabalho de parto de baixo risco seja reclassificado como de vigilância acrescida, passando a necessitar de um conhecimento diferenciado que justifique uma intervenção médica obstétrica, como aliás é já muitas vezes a realidade atual. Não se trata de negligenciar riscos (potenciais) que no imediato não existem, e sim, de gerir eficazmente os recursos para situações, essas sim de risco.
Quem conhece a realidade das salas de parto, sabe que esta orientação é tão somente o reconhecimento justo, legítimo e, a meu ver, um tanto tardio, do dia-a-dia de uma classe especializada, muito bem formada e mais que capacitada para o desempenho responsável desta atividade.
Sendo a enfermagem portuguesa sobejamente reconhecida a nível internacional e, atendendo ao panorama da obstetrícia a nível mundial em comparação com Portugal, o que não se compreende é o atraso de quase vinte anos para que esta orientação não tivesse sido já tomada.
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