Mário André Macedo Enfermeiro Especialista em Saúde Infantil e Pediátrica

A guerra e a saúde, relembrar o VIH

08/16/2023

Já faz algum tempo que não escrevo sobre o impacto da invasão russa na saúde, que se faz sentir mais intensamente nos ucranianos, naturalmente, mas cujos seus efeitos não se ficam por aqui. O caso do VIH é um bom exemplo, não só das consequências que diferentes políticas públicas têm nos resultados em saúde, como da disrupção causada pela guerra.
Em 2017, três em cada quatro novos casos de VIH na Europa, ocorreram na Ucrânia e Rússia, sendo que a transmissão ocorreu maioritariamente por partilha de seringas infetadas, e não por contactos sexuais. Um padrão diferente do resto da Europa, tanto em dimensão, como na forma predominante de contágio. Agora, com os milhões de refugiados causados pela guerra, aumentam as preocupações que devido a políticas restritivas e punitivas no campo das adições, associado a dificuldades no acesso a testes e medicação, estejam criadas as condições ideias para causar um aumento do número de casos.
Vale a pena analisar melhor a influência que as políticas públicas produzem no controlo do VIH. A Ucrânia e Rússia sempre apresentaram um padrão diferente do resto da Europa. Resultado de uma estigmatização e excessiva criminalização das políticas de combate às adições. Até 2014, as terapêuticas de substituição de opioides eram proibidas na Ucrânia. Em 2023, continuam a ser proibidas na Rússia. Esta opção causa um aumento dos comportamentos de risco, como a partilha de seringas, que por sua vez, produz diretamente um aumento de novos casos. Graças à nova abordagem ucraniana ao problema, em 2022, apesar de manter ainda taxas elevadas de novos casos de VIH, a tendência já era decrescente, num claro contraste com a Rússia e as regiões ocupadas.

Os países que mais acolhem refugiados ucranianos, como a Polónia ou Hungria, sem esquecer a já referida Rússia, não são reconhecidos pela universalidade do sistema de saúde ou facilidade de navegação no sistema. E as políticas relativas a consumos e adições estão longe de ser as ideais. Por esse motivo, um em cada três novos casos de infeção por VIH em refugiados ucranianos na Polónia, o diagnóstico é efetuado já no estadio de SIDA, o que demonstra que a vigilância e a testagem não são efetuadas de forma correta, o que leva a atrasados no diagnóstico, agravamento do estado de saúde e novas oportunidades de transmissão do vírus. Na Rússia, não há menção nem notícias de tentativas de cruzar dados de saúde dos 4,5 milhões de refugiados ucranianos. Em combinação com as políticas públicas de saúde do país, significa que até 50 mil pessoas vivem sem acesso ao indispensável tratamento antirretroviral.

Acabar com a epidemia de VIH na Ucrânia é agora uma responsabilidade dos vários países da região. Em caso de insucesso, o retrocesso nos indicadores de saúde regionais será considerável. Descriminalizar o consumo e apoiar as pessoas, acesso fácil a testes e a medicação antirretroviral, incluindo a terapia pós exposição, fazem parte das ferramentas ao nosso dispor para controlar de vez a epidemia do VIH. Como em tantos outros exemplos na saúde, a estigmatização, a marginalização e a criminalização, não vão resolver problemas de saúde pública. Pelo contrário, apenas os agravam.

 

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

Chamadas para o SNS24 disparam 71% ao ano, mas taxa de atendimento cai para 75%

O serviço de atendimento telefónico SNS24 registou um crescimento anual de 71% no volume de chamadas desde 2023, ultrapassando os níveis pré-pandemia. Contudo, a capacidade de resposta não acompanhou este boom, com a taxa de chamadas atendidas a cair para 74,9%, levantando dúvidas sobre a sustentabilidade do modelo

ULSEDV Promove Primeiro Encontro Conjunto para Cuidados da Mulher e da Criança

A Unidade Local de Saúde de Entre Douro e Vouga organiza a 11 e 12 de novembro de 2025 as suas primeiras Jornadas da Saúde da Mulher e da Criança. O evento, no Europarque, em Santa Maria da Feira, visa consolidar a articulação clínica entre os hospitais e os centros de saúde da região, num esforço para uniformizar e melhorar os cuidados prestados.

Projeto “Com a Saúde Não Se Brinca” foca cancro da bexiga para quebrar estigma

A Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde lançou uma nova temporada do projeto “Com a Saúde Não Se Brinca” dedicada ao cancro da bexiga. Especialistas e doentes unem-se para combater o estigma em torno dos sintomas e alertar para a importância do diagnóstico atempado desta doença, que regista mais de 3.500 novos casos anuais em Portugal.

Maria Alexandra Teodósio eleita nova Reitora da Universidade do Algarve

O Conselho Geral da Universidade do Algarve elegeu Maria Alexandra Teodósio como nova reitora, com 19 votos, numa sessão plenária realizada no Campus de Gambelas. A investigadora e atual vice-reitora, a primeira mulher a liderar a academia algarvia, sucederá a Paulo Águas, devendo a tomada de posse ocorrer a 17 de dezembro, data do 46.º aniversário da instituição

Futuro da hemodiálise em Ponta Delgada por decidir

A Direção Regional da Saúde dos Açores assegura que nenhuma decisão foi tomada sobre o serviço de hemodiálise do Hospital de Ponta Delgada. O esclarecimento surge após uma proposta do BE para ouvir entidades sobre uma eventual externalização do serviço, que foi chumbada. O único objetivo, garante a tutela, será o bem-estar dos utentes.

Crómio surge como aliado no controlo metabólico e cardiovascular em diabéticos

Estudos recentes indicam que o crómio, um mineral obtido através da alimentação, pode ter um papel relevante na modulação do açúcar no sangue e na proteção cardiovascular, especialmente em indivíduos com diabetes tipo 2 ou pré-diabetes. Uma meta-análise publicada na JACC: Advances, que incluiu 64 ensaios clínicos, revela que a suplementação com este oligoelemento está associada a melhorias em parâmetros glicémicos, lipídicos e de pressão arterial, abrindo caminho a novas abordagens nutricionais no combate a estas condições

Alzheimer Portugal debate novos fármacos e caminhos clínicos em conferência anual

A Conferência Anual da Alzheimer Portugal, marcada para 18 de novembro na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, vai centrar-se no percurso que vai “Da Ciência à Clínica”. Especialistas vão analisar os avanços no diagnóstico, novos medicamentos e a articulação entre cuidados de saúde e apoio social, num evento que pretende ser um ponto de encontro para famílias e profissionais

Bayer anuncia redução significativa de marcador renal com finerenona em doentes com diabetes tipo 1

A finerenona reduziu em 25% o marcador urinário RACU em doentes renais com diabetes tipo 1, de acordo com o estudo FINE-ONE. Este é o primeiro fármaco em mais de 30 anos a demonstrar eficácia num ensaio de Fase III para esta condição, oferecendo uma nova esperança terapêutica. A segurança do medicamento manteve o perfil esperado, com a Bayer a preparar-se para avançar com pedidos de aprovação regulatória.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights