Sofia Ravara: “O argumento de que o tabaco aquecido é menos danoso é uma falácia”

02/03/2024
O tabaco aquecido e os cigarros eletrónicos fazem menos mal e ajudam a deixar de fumar? Foi esta e mais perguntas que a Coordenadora do Grupo de Estudos do Tabaco da Sociedade Portuguesa de Pneumologia respondeu ao HealthNews. A especialista Sofia Ravara alertou que "existe evidência científica cumulativa que alerta para o desenvolvimento de doenças semelhantes às que são provocadas pelo tabaco convencional", criticando os argumentos dados pela indústria nas suas estratégias de marketing. Sobre as novas regras implementadas em Portugal, a também professora da Universidade da Beira Interior disse terem ficado aquém das expectativas. 

HealthNews (HN)- Atualmente existem diversas alternativas aos cigarros convencionais cada vez mais apelativas e consideradas como “menos prejudiciais” para a saúde. Estas novas formas de fumar diminuem ou não os riscos e os malefícios associados ao tabaco tradicional?

Sofia Ravara (SR)- Os efeitos a médio e longo prazo ainda não estão completamente esclarecidos, uma vez que os fatores determinantes da doença associada ao tabaco são: a duração do comportamento e a idade de início. Por outro lado, em medicina é difícil provar a causalidade do efeito da exposição a estes produtos. De qualquer modo, existe evidência científica cumulativa que alerta para o desenvolvimento de doenças semelhantes às que são provocadas pelo tabaco convencional e até outras que até à data não estão provadas para o tabaco tradicional, como o potencial risco de hepatoxicidade do tabaco aquecido.

HN- Qual o real perigo da utilização generalizada de novas tecnologias associadas ao consumo de produtos derivados do tabaco, como o tabaco aquecido e os cigarros eletrónicos?

SR- O tabaco é o produto de consumo mais bem estudado na história da ciência. Aliás, a primeira revisão sistemática que foi publicada foi exatamente sobre os malefícios do tabaco. Mas, relativamente a estas novas formas de fumar sabemos que o mecanismo de aquecimento e a composição do aerossol é diferente. No caso do cigarro eletrónico e do tabaco aquecido, os aditivos (aromas e sabores) que são incorporados produzem substâncias tóxicas, irritantes e carcinogénicas. O aerossol do tabaco aquecido gera substâncias como um metabólito da acroleína (tóxico e irritante), formaldeído, alcatrão, material particulado, acetaldeído (um cancerígeno), acrilamida (um potencial cancerígeno), além de marcadores de combustão tais como monóxido de carbono (neste caso em menor quantidade do que os cigarros tradicionais). Estas substâncias são muito tóxicas, extremamente irritantes e lesivas para o sistema respiratório, cardiovascular e imunológico, não havendo consumo seguro, sobretudo através da via inalada.

O tabaco aquecido tem as mesmas substâncias do tabaco tradicional, algumas em maiores e outras em menores concentrações. Portanto, o argumento de que o tabaco aquecido é menos danoso porque não tem combustão é uma falácia…. é o discurso que a indústria utiliza para distrair os consumidores da sua nocividade e os decisores políticos da regulação destes produtos.

Aquilo que perpetua o enormíssimo lucro da indústria é o facto de ambos os produtos, o tabaco aquecido e o cigarro eletrónico, usarem nicotina. Esta substância é altamente aditiva e essa adição é muito facilitada pelo marketing. A experimentação é uma estratégia muito perigosa, sobretudo nos jovens. Estes produtos são carcinogénicos. Não existe consumo seguro, ainda por cima quando este é diário e regular.

HN- O consumo destes produtos conduz, portanto, ao aparecimento de diversas doenças…

SR- Existem diversos estudos em modelos animais que expõem os ratinhos à exposição do aerossol de tabaco aquecido e de cigarros eletrónicos e mostram que reproduzem mecanismos de doença similares à Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), doença oncológica e lesão do sistema cardiovascular.

HN- O tabagismo é sentido como uma “pedra no sapato” para todos os profissionais que trabalham mais de perto com as doenças respiratórias. Que tipo de medidas devem ser implementadas para travar este comportamento aditivo?

SR- A Organização Mundial da Saúde emitiu há pouco tempo uma “call to action” onde encorajava os países a manter a proibição da comercialização destes produtos, como por exemplo acontece no Brasil. Por outro lado, nos países em que não se conseguiu impedir a sua comercialização, a OMS aconselha a que haja uma forte regulação para que o tabaco aquecido seja equiparado ao tabaco convencional, os aromas e sabores sejam proibidos e para que as embalagens sejam acompanhadas de texto e imagens, o imposto seja muito alto e o marketing seja banido.

Existem outro tipo de medidas, mais “sociais”, que permitem promover ambientes saudáveis, como por exemplo a proibição de utilização destes produtos não só em espaços fechados, como em ambientes exteriores onde está provado que também existe exposição, como em terraços, esplanadas e no recinto exterior de edifícios. Também era importante travar a promoção destes produtos nos bares e discotecas. Sabemos que existe promoção do tabaco aquecido na noite da indústria recreativa dos jovens em cidades como Lisboa. Tem que haver fiscalização regular, senão houver está seriamente comprometida a aplicação da lei.

A nível político, era importante que no Orçamento de Estado fossem discutidos os impostos especiais sobre o produtos de consumo danosos para saúde, como o tabaco e o álcool. No caso do tabaco é muito importante que esse aumento seja anual, para que acompanhe a inflação, e transversal a todos os produtos. Essa subida do preço não tem sido consistente e deveria ser de pelo menos dez por cento. Basta olharmos para a França onde comprar um maço de tabaco custa mais de dez euros, enquanto que em Portugal o preço mantém-se nos quatro e cinco euros.

HN- Um reforço da rede de cessação tabágica não poderia também contribuir?

SR- As pessoas que fumam tabaco aquecido têm muita dificuldade em deixar de fumar. Nas nossas consultas, estas pessoas afirmam que passaram a fumar mais porque não sentem essa aspereza do fumo do tabaco tradicional, e, portanto, podem inalar mais profundamente, tornando-se mais dependentes. Neste sentido, é importante que a rede de tratamento do Serviço Nacional de Saúde seja fortalecida. Para além das consultas de cessação tabágica era importante que houvesse uma resposta integrada. Os programas de gestão de doença crónica têm de ter o tratamento do tabagismo. Quando temos um doente com uma doença cardiovascular, uma doença respiratória crónica ou com doença oncológica a prioridade deve ser a cessação tabágica. De facto, é uma das medidas mais custo-efetivas que existem.

Por outro lado, era muito importante que existissem linhas telefónicas que fizessem aconselhamento ao longo do tempo e que permitissem a prescrição de medicação. Estes programas mais abrangentes e acessíveis à população devem estar centrados na comunidade.

HN- No dia 16 de janeiro entraram em vigor novas regras para o tabaco aquecido. No entanto, na nova lei ficou apenas contemplada a equiparação dos cigarros eletrónicos ao tabaco tradicional, caindo propostas sobre a proibição de venda e consumo de tabaco próximo de escolas, em bombas de gasolina ou em esplanadas com alguma cobertura. Como olha para esta decisão? As medidas são insuficientes? 

SR- Sim. Nunca uma medida isolada tem o mesmo efeito do que um conjunto de medidas robustas. Portugal tem sido muito pouco proativo no que toca às estratégias de prevenção e controlo do tabagismo. Por exemplo, acho uma pena não ter sido implementada a abolição das máquinas automáticas. Sabemos que diminuir o acesso é uma das medidas mais importantes para diminuir o consumo. De qualquer modo, estas novas regras são necessárias para travar o consumo crescente de tabaco aquecido em Portugal.

Entrevista de Vaishaly Camões

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