Leonel Oliveira: “deveria haver enfermeiros nas escolas”

08/06/2024
A Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Escolar nasceu a 21 de maio. No momento da nossa conversa com o presidente, Leonel Oliveira, ainda era um recém-nascido, mas os objetivos estavam já bem definidos e o ano de 2024 planeado. A sociedade quer, entre outras medidas apresentadas em entrevista, consolidar a figura do enfermeiro de saúde escolar e prevenir a doença.

HealthNews (HN) – Qual é o papel do enfermeiro de saúde escolar?

Leonel Oliveira (LO) – O enfermeiro tem um papel crucial no âmbito da saúde escolar. Em primeiro lugar, em três grandes níveis que estão preconizados por aquilo que é o Programa Nacional de Saúde Escolar. O primeiro será a nível da promoção da saúde e capacitação no que diz respeito à adoção de comportamentos saudáveis, para que as nossas crianças e os nossos jovens possam efetivamente ter comportamentos considerados saudáveis e que lhes permitam ter um estilo de vida saudável e promotor de saúde. No fundo, acaba por ir ao encontro daquilo que são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e que nos permite tentar, de alguma forma, reduzir a incidência de doenças crónicas no futuro – porque trabalhar na saúde escolar é trabalhar a prevenção e a promoção, essencialmente.

Portanto, não estamos a trabalhar doença, estamos a trabalhar para que essas situações não aconteçam. Daí a importância vital da enfermagem neste processo, uma vez que são os profissionais que acabam por estar próximo das crianças e dos jovens. E não só. Não nos podemos esquecer que a saúde escolar não trabalha só com crianças e jovens, a saúde escolar também trabalha, ou deve trabalhar, com os professores, funcionários das escolas e com os pais ou encarregados de educação. Portanto, a saúde escolar trabalha com a comunidade educativa. E ao trabalhar com a comunidade educativa, estamos a trabalhar com um grupo grande de pessoas que pode contribuir para um desenvolvimento e para a aquisição de competências das crianças e jovens, mas também deles próprios, adultos. Efetivamente, nós sabemos que as crianças desenvolvem comportamentos por modelagem, portanto, obviamente, eles vão reproduzir comportamentos a que assistem, e eu não posso, por exemplo, estar a trabalhar com a criança a alimentação saudável e dizer-lhe que o pão que deve comer é o mais escuro quando em casa os pais compram pão de forma ou pão claro. Portanto, o trabalho do enfermeiro de saúde escolar, no que diz respeito à promoção e ao fortalecimento da literacia em saúde das crianças e dos jovens, envolve toda a comunidade educativa. Os bares e as cantinas das escolas também devem ser promotores de uma alimentação saudável. Não posso estar a apregoar a alimentação saudável e ter na cantina ou no bar alimentos que são tudo menos promotores de uma alimentação saudável. No fundo, acaba por ser este também o nosso papel, isto numa área muito particular, da promoção e da capacitação.

Depois, existe outra área que é fundamental, já naquilo que são as condições de saúde, ou seja, crianças e jovens que têm alguma patologia e que estão inseridos em meio escolar. Os enfermeiros têm um papel fundamental na avaliação daquilo que são as condições daquela criança em meio escolar e na integração e inclusão efetiva junto com a escola e com as equipas multidisciplinares de apoio à inclusão das escolas; no desenvolvimento de um plano de saúde individual que terá um conjunto de intervenções a serem adotadas pelos atores das escolas que permita uma devida inclusão da criança em meio escolar. Estou a falar, por exemplo, de uma criança com diabetes. Uma criança diabética não terá, à partida, problemas de aprendizagem, no entanto é necessário que o ambiente onde a criança vai estar a maior parte do tempo, que é a escola, seja seguro. Para ser um ambiente seguro, eu preciso que a escola esteja preparada para uma atuação no caso, por exemplo, de uma hipoglicemia ou hiperglicemia, e isto é a nossa função enquanto enfermeiros.

Se me perguntasse se deveria haver enfermeiros nas escolas: deveria. Esta é a nossa perspetiva. Até porque cada vez mais temos crianças com mais patologias, patologias mais complexas em contexto escolar, e as escolas, muitas vezes, continuam desprovidas de competência para lidar com as situações, e não têm que ter essa competência porque não são profissionais de saúde, são profissionais de educação. Então, o enfermeiro tem aqui um papel muito importante, nesta integração das crianças com doença crónica em meio escolar. Outra das áreas é a questão ambiental, dos ambientes escolares, que sejam ambientes saudáveis. Quando falamos de ambiente, estamos a falar mesmo do ambiente físico, portanto, ergonomia, espaços. São estas as três grandes áreas da intervenção da enfermagem na saúde escolar.

HN – Em Portugal, fala-se cada vez mais em prevenir a doença. Falou-me, por exemplo, em ter enfermeiros nas escolas e uma ação mais incisiva. Essa é uma das medidas que nos permitirá focar mais na prevenção?

LO – Sim. No entanto, é preciso que os decisores olhem efetivamente para a promoção e para a prevenção. Neste momento, temos uma política baseada na doença. Todas as medidas e programas que saem têm um foco exclusivo na doença, e, efetivamente, nós precisamos de tentar olhar para a saúde na perspetiva de promoção e de prevenção, porque é isso que vai permitir diminuir as comorbilidades e as doenças crónicas que decorrem dos comportamentos menos saudáveis e que, no fundo, acabam por gastar, mais à frente, muitos recursos ao sistema nacional de saúde. E quando olhamos para a promoção e para a prevenção com olhos de ver, vamos conseguir perceber isso, e há estudos americanos que falam disso: cada dólar investido na prevenção e promoção são 10 dólares economizados depois. Portanto, há aqui uma relação direta. Ao investirmos na prevenção, estamos a economizar mais à frente, e eu acho que este é um grande problema da saúde escolar e da enfermagem de saúde escolar: não conseguimos medir no imediato a efetividade das nossas intervenções. Por isso é que não há, provavelmente, um foco mais centrado naquilo que é a prevenção e a promoção. A investigação também acaba por estar aqui em défice. Também por isso criámos a nossa Sociedade, exatamente para também trabalhar no sentido de produzir evidência que nos mostre que há aqui um ganho. Temos a noção de que os nossos decisores políticos só vão olhar para a prevenção e para a promoção se houver estudos que nos digam que temos aqui um ganho.

HN – Então, a ligação entre a academia, as escolas e as instituições de saúde também tem aqui um papel crucial?

LO – Um papel fundamental, nomeadamente naquilo que é o apoio aos colegas da clínica, da prática. Os investigadores por si só não conseguem, se calhar, chegar onde devem chegar. Se os investigadores se articularem com os colegas que estão no terreno e aliarmos a prática à academia, vamos ter aqui, conto eu, uma articulação muito eficaz e profícua. Existem inúmeros projetos no âmbito da saúde escolar com resultados interessantíssimos, mas que depois ficam ali fechados. Temos que potenciar esse tipo de articulação entre a academia e a prática para depois podermos ter uma divulgação e um trabalho articulado.

HN – Que objetivos conduziram à criação da Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Escolar?

LO – Curiosamente, quando resolvemos iniciar este processo, fui a uns registos antigos e já tinha um esboço disto em 2011. No entanto, só agora foi possível, num grupo de trabalho, conseguirmos criar esta sociedade. Somos um grupo de professores e de colegas da prática, os fundadores, e esta sociedade tem como missão desenvolver e disseminar o conhecimento em enfermagem de saúde escolar, porque é isto que está a fazer falta. Temos alguns objetivos que são importantes, nomeadamente: contribuir para o estudo e para a investigação em enfermagem de saúde escolar; contribuir para o desenvolvimento da saúde escolar privilegiando os processos de co-construção do conhecimento com a comunidade educativa; desenvolvimento de iniciativas, por exemplo formações específicas para os colegas da prática, sessões científicas, colóquios, seminários, que vão desenvolver e disseminar o conhecimento; divulgar e fazer publicação da nossa atividade científica; e contribuir para a consolidação da identidade de uma figura que vai existindo, mas que ainda não está visível, em Portugal, pelo menos, que é o enfermeiro de saúde escolar, com o respetivo reconhecimento social. Se olharmos para os Estados Unidos, Inglaterra, Suíça e outros países, vemos esta figura do enfermeiro de saúde escolar.

HN – No momento desta entrevista, a Sociedade ainda é um recém-nascido.

LO – Nasceu a 21 de maio, portanto é mesmo um recém-nascido. Ainda estamos no processo de divulgação. Os órgãos já estão constituídos e estamos agora naquela fase mais burocrática.

HN – Já tiveram oportunidade de idealizar as primeiras iniciativos ou o ano de 2024?

LO – Sim. Em 2024, para além da divulgação da Sociedade junto dos colegas para que se associem, temos previsto um evento que será um webinar de apresentação da Sociedade ao público em geral, que ainda não tem data, mas queremos fazê-lo ainda este ano. E como trabalho inicial e estruturante, queremos fazer um diagnóstico de situação. Ou seja, a sociedade quer mapear, a nível nacional, o que é que está a ser realizado no âmbito da enfermagem de saúde escolar: por quem, quem são estes enfermeiros, que formação têm, que especialidade têm, como é que estão a desenvolver as intervenções a nível nacional nas suas escolas. Nós sabemos que temos um país com realidades diferentes e, no fundo, queremos perceber que realidades são estas e de que forma estão os colegas da saúde escolar a desenvolver as suas atividades.

HN – Como é constituída a vossa equipa? É importante integrar pessoas de norte a sul, certo?

LO – Exatamente. Nós temos pessoas de norte a sul. Na direção, estou eu, como presidente; está a professora Constança Festas, da Universidade Católica do Porto, como vice-presidente; a professora Sónia Rodrigues, da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, como secretária; a professora Paula Leal, tesoureira da direção, também da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa; e a professora Cláudia Bacatum, também da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. A Assembleia Geral é constituída pela professora Rafaela Rosário, da Escola Superior de Enfermagem da Universidade do Minho; pela professora Ana Dias, da Escola Superior de Enfermagem de São João de Deus da Universidade de Évora; e pela professora Ermelinda Caldeira, da Escola Superior de Enfermagem de São João de Deus da Universidade de Évora. No Conselho Fiscal, temos a senhora enfermeira Paula Santos, da ULS de Matosinhos; a professora Cristina Baixinho, da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa; e a professora Fernanda Pombal, da Escola Superior de Enfermagem da CESPU. Estes são os fundadores da sociedade.

HN – Enquanto presidente, quais acredita que serão os maiores desafios e, por outro lado, quais seriam os maiores feitos?

LO – Em primeiro lugar, gostava de conseguir contribuir para que o conhecimento, os resultados e o trabalho pela enfermagem de saúde escolar fossem públicos, que as pessoas conhecessem e houvesse um reconhecimento. Que não fique só em cada escola, em cada cantinho. Aquilo que se pretende é, no fundo, darmos voz aos colegas que desenvolvem a sua atividade nesta área. As grandes questões serão a divulgação daquilo que está a ser realizado pelos colegas; tentar uniformizar a intervenção no âmbito da saúde escolar, para que todas as nossas crianças e toda a comunidade educativa, seja no Norte, seja no Centro, seja no Sul, tenham acesso às mesmas coisas, porque nós sabemos de antemão que isso não acontece; e que os decisores políticos consigam olhar para a promoção e para a prevenção com os olhos com que têm que ser olhadas.

Sabemos que estamos num mundo em que há muita informação, mas às vezes é difícil conseguirmos selecionar a melhor evidência científica para podermos atuar. A Sociedade acaba por ter este papel, por divulgar as melhores práticas e ajudar os colegas no sentido de melhorar o que possam considerar que têm que melhorar.

Entrevista de Rita Antunes

Aceda a mais conteúdos da revista #23 aqui.

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