1 – INTRODUÇÃO
A presença dos pais durante procedimentos de reanimação ou intervenções invasivas dos seus filhos, tem sido um tema de intenso debate na comunidade académica e na prática clínica, entre médicos, enfermeiros e psicólogos nas últimas décadas. Enquanto alguns profissionais de saúde defendem, que essa prática pode trazer benefícios emocionais para a família, outros argumentam, que a presença dos pais pode interferir negativamente no atendimento e aumentar o stress da equipa dos profissionais, e por este motivo, não o permitem.
Contudo, as guidelines do Grupo de Reanimação Pediátrica em Portugal, do European Resuscitation Council – Guidelines for Resuscitation, da American Heart Association, da American Academy of Pediatrics, do American College of Emercency Physicians, da Emergency Nurses Association e do Resuscitation Council UK, há muito que emitiram pareceres, no sentido de se promover a elaboração de protocolos e procedimentos tendo por base a filosofia dos cuidados centrados na família, e o desenvolvimento de competências dos profissionais de saúde, no que se refere à integração dos pais na sala de reanimação.
Existem razões importantes para justificar essa prática, uma vez que é o que nos permite estar em sintonia com os direitos da criança, onde se inclui: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Carta da Criança Hospitalizada – Carta de Leiden e a Lei nº 95/2019, de 4 de setembro – Lei de Bases da Saúde.
No entanto, vale a pena rever a Lei nº 15/2014, de 21 de março, que regula os direitos e os deveres do utente dos serviços de saúde. Esta lei, regula igualmente, o direito da criança ao acompanhamento familiar durante os internamentos hospitalares, assim como, aspetos importantes relacionados com a proteção dos direitos da criança no contexto hospitalar. Os principais pontos a destacar são: o direito ao acompanhamento permanente do pai e da mãe, ou de pessoa que os substitua, até aos 18 anos; a partir dos 16 anos, o jovem pode designar uma pessoa acompanhante ou prescindir dela; a relação de parentesco não pode ser invocada para impedir o acompanhamento; os períodos de acompanhamento são diários, diurnos e noturnos; o exercício do direito ao acompanhamento é gratuito, não podendo o estabelecimento de saúde exigir qualquer retribuição; nos serviços de urgência do SNS (Serviço Nacional de Saúde), a todos é reconhecido e garantido o direito de acompanhamento por uma pessoa por si indicada, devendo ser prestada essa informação na admissão pelo serviço; o pai, a mãe ou pessoa que os substitua pode estar presente no bloco operatório até à indução da anestesia e na fase do recobro. No entanto, assistir a intervenções cirúrgicas, exames ou tratamentos que, pela sua natureza, possam ver a sua eficácia e correção prejudicadas pela presença do acompanhante e as doenças transmissíveis, podem ser limitações ao acompanhamento, exceto se para tal for dada autorização expressa pelo clínico responsável.
2 – IMPACTO NA FAMÍLIA/CRIANÇA
Uma paragem cardiorrespiratória, ou a necessidade de uma intervenção invasiva numa criança, é um evento traumático e devastador para a família, com repercussões psicológicas significativas, que comprometem a dinâmica familiar. Neste sentido, a presença dos pais durante o evento clínico ou procedimento, contribui para os cuidados centrados na família durante um momento crítico.
A presença dos pais ou pessoa por eles designada proporciona: conforto emocional para a criança num momento de stress extremo; redução da ansiedade e do medo; sensação de segurança e familiaridade num ambiente hospitalar estranho; respeito pelo direito à informação e participação; que os pais atuem como defensores dos interesses da criança, garantindo que os seus direitos sejam respeitados mesmo em situações de emergência; a identificação precoce de problemas ou complicações, possibilitando intervenções rápidas; uma comunicação eficaz, que por sua vez, contribui para criar uma cultura de segurança no hospital; o fortalecimento do vínculo familiar; que os pais assumam o seu papel de cuidadores primários; uma melhor compreensão da condição de saúde da criança; um processo de luto mais informado, caso a situação seja desfavorável; uma melhor comunicação e tomada de decisões, logo, uma melhor gestão de espectativas; uma tomada de decisões informadas em tempo real; uma diminuição de sentimentos de culpa; um melhor entendimento das necessidades específicas da criança; um alinhamento com os aspetos teóricos dos cuidados centrados na família; um aumento da satisfação com os cuidados; um maior respeito pelos desejos e valores dos pais/criança; e, uma atenuação dos sintomas como depressão e stress pós-traumático, após alta hospitalar (1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15).
3 – PRINCÍPIOS ÉTICOS
As implicações éticas destacam a complexidade da decisão e a necessidade de uma abordagem cuidadosa, que equilibre os benefícios potenciais com os riscos, sempre priorizando o melhor interesse da criança e o respeito pelos direitos e necessidades da família.
Destacamos neste âmbito, o respeito pelos princípios: da autonomia da familiar, pois permite que as famílias exerçam o seu direito de estar presentes e que forneçam informações importantes para a tomada de decisão, incluindo a possível suspensão dos esforços de reanimação; da beneficência, tendo em conta que a presença familiar pode proporcionar mais e melhores informações, que conduzem uma maior coordenação dos cuidados; da não-maleficência, que evita causar danos psicológicos adicionais à família, ao impedir a sua presença; da justiça, pela necessidade de tratar as famílias de forma igualitária, dando-lhes a opção de estarem presentes; da transparência, que permite que a família compreenda melhor os esforços realizados pela equipa de saúde, podendo reduzir conflitos, aumentar a satisfação com o atendimento e aumentar a confiança na relação terapêutica; da diversidade cultural e religiosa, dando a possibilidade à família de manter os seus costumes e exercer sua fé; da proporcionalidade terapêutica, para evitar a má prática da distanásia, ou obstinação terapêutica, ou tratamentos inúteis, fúteis ou desadequados para a situação clinica, uma vez que não atingem os objetivos para os quais foram prescritos.
4 – DESAFIOS PARA A EQUIPA
Os desafios para uma equipa, implicam a necessidade de uma abordagem cuidadosamente planeada e estruturada, para integrar a presença da família durante uma reanimação de forma eficaz e benéfica para todos os intervenientes.
Os principais desafios enfrentados pela equipe de saúde com a presença da família durante a reanimação pediátrica incluem: aumento do stress e da pressão sobre a equipe, uma vez que já se sentem pressionados para não falhar e dar uma resposta eficaz à situação crítica; suporte adicional aos familiares, para além do foco nos procedimentos de reanimação; medo de interferência nos procedimentos; preocupação com os efeitos traumáticos em familiares; necessidade de um treinamento específico, para o trabalho em equipa multidisciplinar, comunicação de alto desempenho e comunicação de más noticias; gestão do espaço físico; gestão de reações emocionais intensas da equipe e da família; preparação para as questões éticas e legais relacionadas com presença da família; designar um membro da equipe para acompanhar, dar suporte, orientar e instruir a família; gestão do aumento de trabalho e pressão sobre a equipe; desenvolvimento de protocolos e procedimentos com diretrizes claras para gerir a presença da família, incluindo critérios de avaliação caso a caso; possível aumento de custos com recursos humanos, para atender às necessidades adicionais de suporte à família; e, gestão da comunicação a partir de meios eletrónicos de tradução simultânea, se necessário.
No entanto, estudos mais recentes sugerem que as interferências negativas da família não se concretizam na prática, uma vez que não houve diferenças significativas na performance da equipa com ou sem a presença de familiares. As investigações mostram que uma implementação de diretrizes e treinamento das equipas a partir de simulações, mostrou uma melhoria no conforto, segurança e desempenho da equipa de saúde quando a família está presente, assim como, uma melhoria na eficiência, a partir de informações importantes sobre a história clínica da criança (16).
5 – SINTESE
É um dever deontológico, integrar novos conhecimentos na prática para se poder prestar cuidados ao mais alto nível. Neste sentido, para normalizar a presença da família durante a reanimação pediátrica de forma eficaz, é fundamental avaliar as necessidades caso a caso, elaborar e implementar protocolos claros, treino adequado e uma abordagem cuidadosamente planeada, baseada na melhor evidência científica. Uma intervenção estruturada permite estabelecer um equilíbrio entre os direitos da criança, o bem-estar emocional, o atendimento à família e a eficácia dos procedimentos técnicos. Para se atingir um nível de performance desejado, é crucial o desenvolvimento de competências na área da comunicação de alto desempenho, no trabalho transdisciplinar da equipa e na liderança.
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