Isabel Moreira: “A lei do tabaco em Portugal é desproporcional e potencialmente inconstitucional”

11/05/2024
Em entrevista exclusiva ao Healthnews, a Isabel Moreira critica a abordagem atual de Portugal em relação ao tabaco, defendendo uma política mais equilibrada. A deputada socialista argumenta que a lei vigente é excessivamente restritiva, ignorando as diferenças entre produtos tradicionais e alternativas menos nocivas. A parlamentar apela a uma revisão legislativa baseada em evidências científicas e que respeite as liberdades individuais

Healthnews (HN) – Com um histórico notável da adoção de estratégias de redução de riscos, designadamente no que respeita à heroína, atualmente parece ter-se abandonado esse paradigma. O que se passa?

 Isabel Moreira (IM) – Em Portugal estamos perante um paradoxo. Por um lado, fomos elogiados internacionalmente pela nossa abordagem às drogas, tratando a toxicodependência como uma adição e não como um crime, e utilizando estratégias de redução de riscos. Por outro lado, quando se trata do tabaco, temos uma abordagem completamente diferente e, na minha opinião, desproporcional.

HN – Pode elaborar um pouco mais sobre esse paradoxo?

IM – Claro. No que diz respeito às drogas, criámos um instituto específico para lidar com a questão, utilizando uma lógica de redução de riscos, como por exemplo o uso de metadona. No entanto, quando se trata do tabaco, que também é uma adição, a abordagem é completamente diferente. A lei atual sobre o tabaco, na minha opinião, vai além do que seria razoável em termos de saúde pública e acaba por infringir liberdades individuais.

HN – A atual lei do tabaco é demasiado restritiva?

IM – Sim, considero. Embora compreenda que a lei visa proteger a saúde pública, limitando a exposição ao fumo passivo e restringindo a publicidade, penso que foi longe demais. Estamos a lidar com um produto lícito, e as medidas atuais são, na minha opinião, desproporcionadas e até simbólicas. Este tipo de legislação simbólica é incompatível com um Estado de direito e com as liberdades individuais.

HN – Falou em medidas desproporcionadas. Pode dar alguns exemplos concretos?

IM – Por exemplo, a proibição de fumar em certos espaços ao ar livre, ou a exigência de distâncias específicas de certos locais para poder fumar, mesmo quando não há risco real para terceiros. Outro exemplo é a forma como a lei trata os novos produtos de tabaco, como os cigarros eletrónicos ou produtos de tabaco aquecido.

HN – E como é que a lei trata esses novos produtos?

IM – A lei equipara esses novos produtos aos cigarros tradicionais, o que é um erro, na minha opinião. Estes produtos, embora não sejam inócuos, apresentam riscos significativamente menores do que os cigarros convencionais. Há estudos que demonstram que estes produtos mantêm o elemento viciante – a nicotina – mas eliminam grande parte dos elementos nocivos associados à combustão do tabaco.

HN – Estes novos produtos deveriam ter um tratamento diferenciado na lei?

IM – Absolutamente. Penso que deveríamos incentivar a transição para estes produtos menos nocivos, em vez de os tratar exatamente da mesma forma que os cigarros tradicionais. É uma questão de redução de riscos. Se não podemos eliminar completamente o vício, pelo menos deveríamos tentar reduzir os danos associados a ele.

HN – Mas isso contraria a tendência atual de uma “Europa livre de fumo”. Como vê esse objetivo?

IM – Considero esse slogan bastante problemático. Uma “Europa livre de fumo” soa-me a uma frase totalitária. Estamos a falar de proibir completamente uma substância lícita, usada por milhões de adultos por sua própria escolha. Isso vai muito além do papel legítimo do Estado na proteção da saúde pública.

HN – Qual deveria ser, na sua opinião, o papel do Estado nesta questão?

IM – O papel do Estado deveria ser informar os cidadãos sobre os riscos, proteger os não-fumadores da exposição involuntária ao fumo, e oferecer apoio àqueles que desejam deixar de fumar. Mas também deve respeitar as escolhas individuais dos adultos e não criminalizar o uso de uma substância legal.

HN – Falou em inconstitucionalidade. Acredita que a atual lei do tabaco é inconstitucional?

IM – Acredito que há elementos da atual lei que são inconstitucionais. A forma como trata de maneira igual produtos com riscos muito diferentes, por exemplo, parece-me claramente desproporcional e, portanto, potencialmente inconstitucional.

HN – Que passos poderiam ser dados para contestar esta lei?

IM – Existem várias vias possíveis. Uma seria através de queixas à Provedora de Justiça, que poderia então suscitar um processo de fiscalização da constitucionalidade junto do Tribunal Constitucional. Outra via seria através de ações judiciais por parte de indivíduos ou empresas afetadas pela lei. É importante que as pessoas que se sentem injustamente afetadas por esta lei façam ouvir a sua voz.

HN – Tem havido resistência a estas ideias no parlamento?

IM – Infelizmente, sim. Este é um tema muito sensível e muitos colegas parlamentares parecem relutantes em abordar o assunto. Há um certo receio de ser visto como “pró-tabaco” se se questionar a abordagem atual. No entanto, não se trata de ser a favor ou contra o tabaco, mas sim de defender uma abordagem baseada em evidências científicas e respeitadoras dos direitos individuais.

HN – Falou de evidências científicas. Existem estudos que apoiem a sua posição?

IM – Existem vários estudos que demonstram os benefícios potenciais de uma abordagem de redução de riscos em relação ao tabaco. Por exemplo, há estudos que mostram que os cigarros eletrónicos e os produtos de tabaco aquecido são significativamente menos nocivos que os cigarros tradicionais. No entanto, muitas vezes estes estudos são ignorados ou desvalorizados no debate político.

HN – Como vê o futuro desta questão em Portugal?

IM – Espero que possamos ter um debate mais aberto e baseado em evidências sobre este tema. Precisamos de uma abordagem que proteja a saúde pública, sim, mas que também respeite as liberdades individuais e reconheça a realidade da adição. Uma abordagem de redução de riscos, semelhante à que adotámos com sucesso em relação às drogas poderia ser muito mais eficaz do que a atual política de proibição crescente.

HN – Falando sobre os produtos de redução de risco, como os cigarros eletrónicos, qual é a sua opinião sobre a forma como estes têm sido tratados pelas autoridades de saúde?

IM – É uma questão complexa. Por um lado, temos as autoridades de saúde, nomeadamente a Organização Mundial de Saúde, que têm demonstrado uma forte reação contra estes produtos. Por outro lado, temos evidências de que estes produtos de redução de risco têm ajudado milhares de pessoas em todo o mundo a deixar de fumar cigarros convencionais.

É importante notar que estes produtos não requerem prescrição médica nem são vendidos em farmácias. Isto representa uma mudança significativa no paradigma do tratamento do tabagismo, que tradicionalmente envolvia medicamentos prescritos. Esta situação gerou uma reação bastante intensa por parte da indústria farmacêutica e da própria OMS.

HN – Na sua opinião, existe um conflito de interesses por parte das entidades de saúde e da indústria farmacêutica?

IM – Sem dúvida que há interesses em jogo. Imagine o impacto que estes produtos tiveram: de repente, milhares de pessoas conseguiram deixar de fumar sem necessitar de comprar medicamentos. Isto representa uma ameaça significativa para a indústria farmacêutica.

Além disso, há uma certa hipocrisia na forma como se aborda a questão dos estudos sobre estes produtos. Por exemplo, critica-se quando uma empresa de produtos de redução de risco realiza estudos sobre os seus próprios produtos. Mas pergunto: se não forem estas empresas a fazê-lo, quem o fará? É claro que deve haver escrutínio e validação independente, mas não podemos simplesmente descartar toda a investigação feita por estas empresas.

HN – Como vê o papel do Estado na regulação do consumo de tabaco e produtos alternativos?

IM – O Estado tem um papel importante na promoção da saúde pública, mas este papel deve ser equilibrado com o respeito pela liberdade individual. O Estado deve, sim, promover a saúde pública através de campanhas de sensibilização e educação para a saúde desde a infância. Pode, por exemplo, incluir mensagens nos maços de tabaco que, em vez de serem apenas imagens chocantes que acabam por gerar habituação e indiferença, forneçam informações úteis sobre como deixar de fumar ou sobre alternativas menos nocivas.

O Estado não deve adotar uma postura paternalista nem castigar comportamentos lícitos. A lógica de que “não se pode viver” de determinada forma é perigosa e vai contra os princípios de liberdade individual. O Estado deve respeitar a liberdade e a saúde pública, abordando as adições sem paternalismo e com humanismo.

HN – Como é que essa abordagem se aplicaria na prática, especialmente em relação aos produtos de redução de risco?

IM – Na prática, isso significaria uma abordagem mais equilibrada. Por exemplo, em vez de equiparar produtos de redução de risco, como cigarros eletrónicos, aos cigarros convencionais, o Estado poderia reconhecer as diferenças e regular de forma apropriada.

Um exemplo concreto é a questão da tributação. Atualmente, em Portugal, aplica-se uma taxa por mililitro ao líquido para cigarros eletrónicos, sujeitando-os ao Imposto sobre o Consumo de Tabaco. Isto é absurdo, porque estes líquidos não são tabaco. Esta equiparação fiscal não tem fundamento no princípio constitucional da capacidade contributiva nem nos supostos impactos sociais do consumo.

HN – Falando em regulamentação, como vê as recentes iniciativas da União Europeia nesta área, como o plano europeu de luta contra o cancro?

IM – É preciso ter cuidado com estas iniciativas bem-intencionadas, mas por vezes irrealistas. O plano europeu de luta contra o cancro, lançado em 2021, estabeleceu o objetivo de criar uma geração livre de tabaco até 2040, com menos de 5% da população a consumir tabaco. Isto parece-me um objetivo bastante utópico.

Além disso, é importante notar que as diretivas europeias nem sempre obrigam os Estados-membros a ir tão longe como alguns países, incluindo Portugal, têm ido. Por exemplo, a diretiva do tabaco não obrigava Portugal a equiparar todos os produtos de nicotina aos cigarros convencionais. Esta foi uma decisão nacional que, na minha opinião, foi além do necessário e do razoável.

HN – Como é que Portugal se compara com outros países europeus nesta matéria?

IM – Portugal tem adotado uma abordagem bastante restritiva, mais do que muitos outros países europeus. Por exemplo, no Reino Unido, quando ainda fazia parte da União Europeia, a abordagem era muito diferente. Lá, reconhecia-se o potencial dos produtos de redução de risco como uma alternativa para os fumadores que não conseguiam ou não queriam deixar de fumar completamente.

Esta diferença de abordagem é significativa e demonstra que, mesmo dentro do quadro regulatório europeu, há espaço para diferentes interpretações e implementações a nível nacional.

HN – Na sua opinião, qual seria a abordagem ideal para lidar com esta questão em Portugal?

IM – A abordagem ideal seria uma que respeite a liberdade individual, promova a saúde pública de forma não paternalista e reconheça as diferenças entre os vários produtos de nicotina.

Concretamente, isto poderia envolver:

  • Campanhas de educação e sensibilização que forneçam informações objetivas sobre os riscos do tabagismo e as opções disponíveis para quem quer deixar de fumar.
  • Uma regulamentação diferenciada para produtos de combustão e produtos de redução de risco, reconhecendo as diferenças nos perfis de risco.
  • Uma política fiscal que não penalize injustamente os produtos menos nocivos.
  • Apoio à investigação independente sobre os efeitos a longo prazo dos produtos de redução de risco.
  • Uma abordagem que respeite a escolha informada dos adultos, sem normalizar o consumo de nicotina, mas também sem demonizar os consumidores.

HN – Isso parece uma mudança significativa em relação à abordagem atual. Como é que se poderia avançar nessa direção?

IM – Realmente seria uma mudança significativa e, infelizmente, sou minoritária nesta posição na Assembleia da República. No entanto, acredito que há várias formas de avançar: Primeiramente, é crucial promover um debate público informado sobre estas questões. Isso inclui dar voz a especialistas em saúde pública, toxicologistas, e também a ex-fumadores que tenham tido sucesso com produtos de redução de risco.

Em segundo lugar, poderíamos considerar uma ação junto do Provedor de Justiça ou mesmo do Tribunal Constitucional para contestar algumas das medidas mais restritivas e potencialmente inconstitucionais.

Além disso, é importante continuar a pressionar por uma revisão da legislação atual, baseada em evidências científicas e não em ideologia ou interesses económicos.

Por fim, devemos olhar para exemplos internacionais de sucesso. Países como o Reino Unido têm adotado uma abordagem mais pragmática e centrada na redução de riscos, e os resultados têm sido positivos.

HN – Que mensagem gostaria de enviar aos decisores políticos e ao público em geral sobre esta questão?

IM – A minha mensagem principal é que precisamos de uma abordagem mais equilibrada e baseada em evidências. O objetivo final deve ser melhorar a saúde pública, mas isso não pode ser feito à custa das liberdades individuais ou ignorando as realidades do comportamento humano.

Aos decisores políticos, peço que considerem cuidadosamente as consequências não intencionais das políticas restritivas. Muitas vezes, estas podem ter o efeito oposto ao desejado, empurrando as pessoas para o mercado negro ou desencorajando-as de fazer a transição para alternativas menos nocivas.

Ao público em geral, encorajo a que se informem sobre este tema além dos headlines sensacionalistas. A questão do tabagismo e da redução de riscos é complexa e merece uma reflexão séria.

Por fim, gostaria de sublinhar que esta não é apenas uma questão de saúde pública, mas também de direitos individuais e da nossa conceção do papel do Estado numa sociedade livre. É um debate que vale a pena ter e que tem implicações muito além da questão do tabaco.

Entrevista: Miguel Múrias Mauritti

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