Maus tratos a crianças continuam a escapar ao radar da saúde

11 de Junho 2025

As crianças vítimas de eventos traumáticos como abusos físicos, psicológicos ou sexuais, ou negligência, podem estar a escapar ao radar dos profissionais de saúde e, consequentemente, das autoridades competentes.

“Detetar e reportar casos de vítimas de trauma na infância é fundamental para instituir um tratamento precoce e, assim, evitar a escalada de danos na sua saúde atual e futura”, alerta Teresa Magalhães, professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), frisando que a notificação de situações suspeitas é obrigatória para médicos e funcionários públicos.

Um estudo que assina em conjunto com outros investigadores da FMUP e Unidade Local de Saúde de Matosinhos indica que apenas 2% das crianças com menos de 16 anos seguidas naquela unidade local de saúde ao longo de 20 anos (2001 a 2021), isto é, cerca de 900 em mais de 40 mil crianças, estão referidas como prováveis vítimas de abuso, negligência ou disfunção familiar, por exemplo.

Como salienta, “a falta de comunicação da parte do sistema de saúde irá atrasar ou mesmo impedir o acesso das vítimas ao apoio médico, psicológico, social, de segurança e judiciário, de que precisam”.

Nas pessoas que terão vivido eventos traumáticos na infância, a percentagem de problemas de saúde é muito superior. Existe um risco aumentado de ferimentos, que pode ser mais do dobro, de intoxicações, de perturbações mentais (como de perturbação de hiperatividade e défice de atenção) e de problemas sociais, comparativamente com o resto da população estudada.

Este trabalho, publicado na Frontiers of Medicine, indica, também, que a diabetes tipo 2 e o colesterol elevado são as principais doenças apresentadas pelas pessoas que terão experienciado traumas quando eram crianças. A diabetes tipo 2 é quase três vezes mais elevada neste grupo. São igualmente mais comuns doenças como a síndrome metabólica, asma, infeções urinárias e mesmo cancro.

De acordo com os investigadores, esta associação entre eventos traumáticos e problemas de saúde poderá explicar-se por “stresse crónico” que provocará um desequilíbrio do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal, bem como uma “disrupção da rede imunitária e neuroendócrina”.

“Estes desequilíbrios causados pelo stresse crónico estão relacionados com um aumento da percentagem de doenças inflamatórias e neuronais e com perturbações no desenvolvimento da arquitetura cerebral, com menos sinapses e com disfunção em certas áreas (o córtex pré-frontal, a amígdala e o hipocampo), essenciais para funções específicas como a cognição e o comportamento”, explica.

Sabe-se, também, que poderão existir modificações epigenéticas nestas crianças, devido a alterações no próprio ADN e ao encurtamento dos telómeros, fenómeno que se associa a uma série de doenças.

Contudo, para Teresa Magalhães, coordenadora do estudo, o desenvolvimento de doenças físicas e mentais dependerá muito da capacidade dos profissionais de saúde de identificarem os sinais e os sintomas suspeitos, mesmo na ausência de um sinal físico explícito. Quando existe um sinal físico ou sintoma suspeito, é necessário que os médicos pensem num possível caso de experiência traumática, designadamente maus tratos.

“A maior parte dos ferimentos em crianças é acidental. No entanto, os médicos têm de estar atentos à possibilidade de um ferimento ser sinal de abuso”, avisa, lembrando que alguns indicadores devem ser tidos em conta, como a falta de justificação, a localização invulgar, padrões e simetria, ferimentos múltiplos e em diferentes estados de evolução, e a procura tardia dos cuidados de saúde.

professora da FMUP acredita que “o cenário atual terá de ser ultrapassado através de uma maior atenção e um maior investimento na defesa das crianças suspeitas de serem vítimas de maus tratos, por parte dos cuidados de saúde, mas também a uma maior consciencialização dos profissionais, sobretudo os profissionais de saúde”.

Desde 2001, os maus tratos a crianças constituem crime público, pelo que, depois da notificação da suspeita, por parte dos profissionais de saúde, não é necessária a apresentação de queixa para que seja iniciada uma investigação do caso.

publicado em FMUP

HN

 

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