O Estado Português delega, desde há séculos, nos médicos (“delegados de saúde”) o poder de intervenção na defesa da saúde das populações. Conclui-se, do exposto, que uma intervenção em saúde pública se deve basear na evidência científica, ainda que estribada na legalidade.
As medidas de saúde pública de âmbito individual incluem o isolamento e a quarentena: o primeiro aplicável a indivíduos doentes/infetados e a última a quem com eles contactou, em condições de risco elevado de infeção. Visam quebrar cadeias de transmissão e assentam no primado do bem comum – pelo que implicando, em determinadas situações, o sacrifício de direitos e liberdades individuais.
A 20 de janeiro, o Conselho de Ministros decidiu permitir o voto aos submetidos a “confinamento obrigatório” (i.e., isolamento e quarentena). Fê-lo, alterando o diploma legal norteador da resposta nacional pandémica.
O acontecimento precipitante de tal decisão foi o elevado número de “confinados” no decurso da presente onda pandémica (a mais intensa de todas) – potencialmente comprometedor da validade do escrutínio eleitoral do próximo dia 30 de janeiro.
Um isolado é um indivíduo comprovadamente infetado e, por isso, infecioso até prova em contrário. A obrigação de permanência no domicílio, durante o período de transmissibilidade clínica da doença, visa impedir a propagação comunitária da infeção, ao inibir as oportunidades de contacto com suscetíveis.
Já a quarentena (“isolamento profilático”), aplica-se ao período de incubação da doença (pré-clínico): o quarentenado não está, à partida, infetado mas é precaucionariamente limitado, na sua interação social, durante o referido período de tempo.
Este procedimento pretende evitar a disseminação da infeção, pós-contacto de risco: caso esta sobrevenha, é secundariamente instituído o isolamento. Uma vez decorrida a quarentena, sem que tal aconteça, infere-se que o contacto não resultou em infeção.
Alega, em adição, o poder político que o “confinamento obrigatório”, legalmente estatuído, atenta contra um direito constitucional primordial: o direito de sufrágio. Tendo o mesmo sido “sonegado” a indivíduos, nas mesmas condições, quando das eleições autárquicas de 26 de setembro passado, será legítimo concluir não se tratar de uma questão de princípio, mas antes de contexto: o voto só é um direito fundamental, carecendo de intervenção salvífica, se implicar muitos eleitores…
A decisão teve o beneplácito – jurídico – de um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República. Desconhece-se, no entanto, a sua fundamentação científica; a existir, contraditaria toda a evidência clínica e epidemiológica e, em concreto, as boas práticas de controlo da infeção.
A Autoridade de Saúde Nacional (Diretora-Geral da Saúde) emanou, no final do dia 19 de janeiro, um documento qualificado de “parecer técnico”. Intitulado “Estratégias de Saúde Pública para as eleições a realizar em 2022” é, na verdade, uma orientação técnica que operacionaliza o determinado pelo Conselho de Ministros de 20 de janeiro: os isolados e os quarentenados podem, “a título excecional”, deslocar-se “exclusivamente para efeitos de exercício de voto” e “em cumprimento das medidas sanitárias e de saúde pública” (sic).
Como medida primordial de controlo da infeção, o voto deve ser realizado, “preferencialmente” (sic), entre as 18h00 e as 19h00. Ou seja, autoriza-se o seu exercício, mas limitando-o no tempo… E remete-se, disforicamente, para os cidadãos o ónus do seu cumprimento.
Aos políticos o que é da política. Mas à ciência o que é da ciência. Na sociedade do século XXI, deve ser a ciência a orientar as políticas e não o contrário.
Só espero, a bem de todos, que tantas exceções e excecionalidades de ocasião não façam a regra futura…
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